Dizer que a tecnologia, seja ela qual for, tem um impacto real, todos os dias, na forma como nos relacionamos uns com os outros e com todo o contexto em redor, será um facto quase inquestionável. Contudo, um dos efeitos mais interessantes da tecnologia, mas também mais desafiantes, é o impacto que ela pode ter na nossa memória individual e coletiva.
A memória parece ser um conceito em desuso. Hoje, muito graças às tecnologias que temos à disposição, é a importância do imediato que prevalece. Tudo tem que ser aqui e a agora. Tudo tem que ser live, porque se não, dize-se, que não existe. Mas, tudo terá que ficar na nossa memória? Talvez não. Muito seguramente que não. Contudo, uma coisa é certa, quer queiramos quer não, a nossa capacidade de registar aquilo que vai acontecendo no dia-a-dia, aumentou exponencialmente e com isso a mais-valia de não cometermos, ciclicamente, enquanto coletivo, os mesmos erros.
Tecnologias de outras épocas
A dada altura da história da humanidade, a Biblioteca de Alexandria da antiguidade era o maior centro de informação do mundo. Não só por receber e reunir alguns dos maiores pensadores da época, mas principalmente, por representar o maior acervo de informação existente na época.
Através do registo escrito e ilustrado, foi possível fazer que toda essa informação, todo esse conhecimento, textos e imagens, factos e histórias, pudessem sobreviver ao derradeiro desafio do tempo e ser do nosso conhecimento hoje. Utilizando as tecnologias da época, bem diferentes das que conhecemos hoje, foi possível imortalizar muita da informação da antiga Biblioteca de Alexandria, mesmo depois da sua destruição.
Sem esse registo, arcaico à luz das possibilidades de hoje, mas de um valor imenso para a nossa história, foi possível fazer com que muita daquela informação contribuiu para a nossa memória coletiva. Não só através do conhecimento, mas também do relato histórico dos acontecimentos da época.
Cábula da memória coletiva
Olhando para a história da antiga Biblioteca de Alexandria, muitas são as lições e conclusões possíveis. As tecnologias, sejam as que existiam na antiguidade ou as que temos hoje, são um contributo valioso e cábula da memória coletiva da humanidade. É através da tecnologia que podemos não só criar e imortalizar um retrato de tudo aquilo que acontece no nosso quotidiano, mas também fazer com isso nos sirva de lição histórica.
Seja das grandes guerras, feitos heróicos, conquistas além mar ou para lá dos limites da terra, a tecnologia ajuda-nos a registar e recordar como chegamos até este ponto da nossa história. Ajuda-nos também a partilhar, a fazer que eu aqui neste momento, possa escrever sobre um texto, mas principalmente imagens, com todo o seu impacto, de algo que aconteceu numa qualquer outra época num qualquer outro logo.
O mundo pela lente do World Press Photo
Um dos muitos retratos que poderemos fazer dos nossos tempos é aquele que iniciativas como o World Press Photo possibilitam. O World Press Photo é uma prestigiada organização independente sem fins lucrativos fundada no ano de 1955 na cidade Holandesa de Amsterdão. A associação é conhecida principalmente por todos os anos levar a cabo um dos maiores concursos de fotojornalismo do mundo.
Através da lente fotográfica de milhares de fotojornalistas um pouco por todo o mundo, o concurso reúne e premia anualmente, imagens que são de certa forma um retrato muito interessante dos desafios da humanidade em cada ano. Assumindo o objetivo de “conectar o mundo às histórias que importam” é impossível dissociar o World Press Photo do retrato das grandes problemáticas da nossa era.
Um retrato do mundo atual
Olhando para os imagens premiadas pela World Press Photo desde 2010 a 2020 é perfeitamente possível perceber, através de fotografias, muitos dos principais problemas que a humanidade tem enfrentado nos últimos anos. As histórias por detrás de cada imagem, revelam não só o verdadeiro poder da fotografia, mas também tornam impossíveis segundas interpretações.
2020
Um jovem no meio da multidão, iluminado por telemóveis das pessoas que o rodeavam, recita poesia de protesto, enquanto os restantes manifestantes entoam slogans pedindo um novo governo, durante um apagão total na cidade de Cartum, no Sudão.
2019
Uma criança hondurenha chamada Yanela Sanchez, chora compulsivamente, enquanto a sua mãe, Sandra Sanchez, é levada por oficiais fronteiriços na cidade de McAllen no estado do Texas nos Estados Unidos da América.
2018
Um jovem venezuelano em chamas, chamado José Víctor Salazar Balza de 28 anos de idade, durante os confrontos violentos com o exército do país em mais um protesto da população contra o presidente Nicolás Maduro na cidade de Caracas na Venezuela.
2017
Assassinato do embaixador russo Andrey Karlov em plena galeria de arte no centro da cidade turca de Ancara, por um polícia turco fora de serviço, chamado Mevlüt Mert Altıntaş, que gritou antes de disparar: “Deus é grande. Não te esqueças de Aleppo. Não te esqueças da Síria.”
2016
Entrega de um bébe por um buraco numa barreira de arame farpado a um refugiado sírio que fugia da guerra e conseguiu cruzar a fronteira da Sérvia para a Hungria, perto da vila de Röszke.
2015
Casal gay, Jon de 21 anos e Alex de 25 anos. A fotografia ilustra este casal em alusão à dificuldade crescente de qualquer pessoa em se assumir como lésbica, gay, bissexual ou transgênero (LGBT) na Rússia.
2014
Imigrantes africanos na costa da cidade de Djibuti à noite, tentando encontrar sinal de rede móvel mais barata da vizinha Somália, com o objetivo de falar com familiares no exterior do seu país.
2013
Os corpos das crianças Suhaib Hijazi, de 2 anos e do seu irmão mais velho Muhammad, de 3 anos, são carregados pelos seus tios, até uma mesquita para o funeral na cidade de Gaza.
2012
Fatima al-Qaws embala nos braços o seu filho Zayed de 18 anos, que sofre com os efeitos do gás lacrimogêneo após participar numa manifestação de rua na cidade de Sanaa no Iêmen.
2011
Retrato de Bibi Aisha uma rapariga afegã de 18 anos, depois de ter sido desfigurada pelo seu marido como forma de vingança por ter fugido de casa. A rapariga foi entregue ao homem que a viria a desfigurar, como forma de pagamento de uma dívida.
2010
Mulheres gritam num telhado da cidade de Teerão no Irão, em discórdia pelo resultado das disputadas eleições presidenciais no país no ano de 2009, entre Mahmoud Ahmadinejad e o seu opositor Mir Hossein Mousavi, sobre as quais recairam suspeitas de fraude eleitoral e originaram nos dias seguintes violentas manifestações.
Memórias e erros comuns
Olhar para cada uma das imagens vencedoras do World Press Photo representa um desafio à nossa memória coletiva. Memória não só no sentido de não nos esquecermos de cada um destes retratos, mas também do caminho e sequência de factos que os antecederam.
É a lembrança desses caminhos e sequência de acontecimentos, que embora possa parecer tentador em muitos momentos nos tempos que vivemos, nos deveria provocar a não repetir os mesmos erros, vezes e vezes sem conta.
Fotografia © Nathan Dumlao (Unsplash)