A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, aprovada pela Assembleia da República Portuguesa no dia 8 de abril, promulgada pelo Presidente da República no dia 8 de maio e publicada em Diário da República no dia 17 de maio de 2021, é uma das peças fundamentais da resposta do país aos desafios crescente e complexos da era digital que todos tão bem conhecemos.
É essencialmente um textos de princípios é certo, mas os Direitos Humanos também se fazem por princípios, aliás, começam nos princípios. Princípios fundamentais de valorização do ser humano seja em que circunstâncias for. É certo que o texto levanta também questões muito sérias, fundamental ligadas às dimensões de controlo e supervisão. Mas, este é um caminho que se faz caminhando, devendo a comunidade estar atenta e enriquecendo o ponto de partida com os seus contributos e debate.
A carta é um texto bastante rico e que toca uma série de aspetos essenciais. Uma carta que pode e deve ser lida e analisada por todos os profissionais, seja de que área técnica for, que com o seu talento e dedicação constroem aquilo a que chamamos de sociedade e economia digital.
Descobrir e explorar a carta
Tendo em vista a promoção do texto original da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, a sua leitura e análise, aqui fica na íntegra os conteúdos dos seus 23 artigos. É um documento que merece uma leitura atenta e com sentido crítico.
A carta que se concretiza no modelo de lei, abrange temas tão diversos com a inteligência artificial, a liberdade de expressão, a cibersegurança, a liberdade de criação e à proteção dos conteúdos, o testamento digital, a geolocalização abusiva, os direitos das crianças, a desinformação, entre muitos outros conceitos e desafios essenciais.
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei aprova a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital.
Artigo 2.º
Direitos em ambiente digital
1. A República Portuguesa participa no processo mundial de transformação da Internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital.
2. As normas que na ordem jurídica portuguesa consagram e tutelam direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço.
Artigo 3.º
Direito de acesso ao ambiente digital
1. Todos, independentemente da ascendência, género, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, têm o direito de livre acesso à Internet.
2. Com vista a assegurar um ambiente digital que fomente e defenda os direitos humanos, compete ao Estado promover:
a) O uso autónomo e responsável da Internet e o livre acesso às tecnologias de informação e comunicação;
b) A definição e execução de programas de promoção da igualdade de género e das competências digitais nas diversas faixas etárias;
c) A eliminação de barreiras no acesso à Internet por pessoas portadoras de necessidades especiais a nível físico, sensorial ou cognitivo, designadamente através da definição e execução de programas com esse fim;
d) A redução e eliminação das assimetrias regionais e locais em matéria de conectividade, assegurando a sua existência nos territórios de baixa densidade e garantindo em todo o território nacional conectividade de qualidade, em banda larga e a preço acessível;
e) A existência de pontos de acesso gratuitos em espaços públicos, como bibliotecas, juntas de freguesia, centros comunitários, jardins públicos, hospitais, centros de saúde, escolas e outros serviços públicos;
f) A criação de uma tarifa social de acesso a serviços de Internet aplicável a clientes finais economicamente vulneráveis;
g) A execução de programas que garantam o acesso a instrumentos e meios tecnológicos e digitais por parte da população, para potenciar as competências digitais e o acesso a plataformas eletrónicas, em particular dos cidadãos mais vulneráveis;
h) A adoção de medidas e ações que assegurem uma melhor acessibilidade e uma utilização mais avisada, que contrarie os comportamentos aditivos e proteja os consumidores digitalmente vulneráveis;
i) A continuidade do domínio de Internet de Portugal «.PT», bem como das condições que o tornam acessível tecnológica e financeiramente a todas as pessoas singulares e coletivas para registo de domínios em condições de transparência e igualdade;
j) A definição e execução de medidas de combate à disponibilização ilícita e à divulgação de conteúdos ilegais em rede e de defesa dos direitos de propriedade intelectual e das vítimas de crimes praticados no ciberespaço.
Artigo 4.º
Liberdade de expressão e criação em ambiente digital
1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar o seu pensamento, bem como de criar, procurar, obter e partilhar ou difundir informações e opiniões em ambiente digital, de forma livre, sem qualquer tipo ou forma de censura, sem prejuízo do disposto na lei relativamente a condutas ilícitas.
2. A República Portuguesa participa nos esforços internacionais para que o ciberespaço permaneça aberto à livre circulação das ideias e da informação e assegure a mais ampla liberdade de expressão, assim como a liberdade de imprensa.
3. Todos têm o direito de beneficiar de medidas públicas de promoção da utilização responsável do ciberespaço e de proteção contra todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição.
4. A criação de obras literárias, científicas ou artísticas originais, bem como as equiparadas a originais e as prestações dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de videogramas e dos organismos de radiodifusão gozam de especial proteção contra a violação do disposto no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de março, em ambiente digital.
Artigo 5.º
Garantia do acesso e uso
É proibida a interrupção intencional de acesso à Internet, seja parcial ou total, ou a limitação da disseminação de informação ou de outros conteúdos, salvo nos casos previstos na lei.
Artigo 6.º
Direito à proteção contra a desinformação
1. O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte.
2. Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.
3. Para efeitos do número anterior, considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.
4. Não estão abrangidos pelo disposto no presente artigo os meros erros na comunicação de informações, bem como as sátiras ou paródias.
5. Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo, sendo aplicáveis os meios de ação referidos no artigo 21.º e o disposto na Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro, relativamente aos procedimentos de queixa e deliberação e ao regime sancionatório.
6. O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.
Artigo 7.º
Direitos de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital
1. A todos é assegurado o direito de reunião, manifestação, associação e participação de modo pacífico em ambiente digital e através dele, designadamente para fins políticos, sociais e culturais, bem como de usar meios de comunicação digitais para a organização e divulgação de ações cívicas ou a sua realização no ciberespaço.
2. Os órgãos de soberania e de poder regional e local asseguram a possibilidade de exercício dos direitos de participação legalmente previstos através de plataformas digitais ou outros meios digitais.
Artigo 8.º
Direito à privacidade em ambiente digital
1. Todos têm direito a comunicar eletronicamente usando a criptografia e outras formas de proteção da identidade ou que evitem a recolha de dados pessoais, designadamente para exercer liberdades civis e políticas sem censura ou discriminação.
2. O direito à proteção de dados pessoais, incluindo o controlo sobre a sua recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição, é assegurado nos termos legais.
Artigo 9.º
Uso da inteligência artificial e de robôs
1. A utilização da inteligência artificial deve ser orientada pelo respeito dos direitos fundamentais, garantindo um justo equilíbrio entre os princípios da explicabilidade, da segurança, da transparência e da responsabilidade, que atenda às circunstâncias de cada caso concreto e estabeleça processos destinados a evitar quaisquer preconceitos e formas de discriminação.
2. As decisões com impacto significativo na esfera dos destinatários que sejam tomadas mediante o uso de algoritmos devem ser comunicadas aos interessados, sendo suscetíveis de recurso e auditáveis, nos termos previstos na lei.
3. São aplicáveis à criação e ao uso de robôs os princípios da beneficência, da não-maleficência, do respeito pela autonomia humana e pela justiça, bem como os princípios e valores consagrados no artigo 2.º do Tratado da União Europeia, designadamente a não discriminação e a tolerância.
Artigo 10.º
Direito à neutralidade da Internet
Todos têm direito a que os conteúdos transmitidos e recebidos em ambiente digital não sejam sujeitos a discriminação, restrição ou interferência em relação ao remetente, ao destinatário, ao tipo ou conteúdo da informação, ao dispositivo ou aplicações utilizados, ou, em geral, a escolhas legítimas das pessoas.
Artigo 11.º
Direito ao desenvolvimento de competências digitais
1. Todos têm direito à educação para a aquisição e o desenvolvimento de competências digitais.
2. O Estado promove e executa programas que incentivem e facilitem o acesso, por parte das várias faixas etárias da população, a meios e instrumentos digitais e tecnológicos, por forma a assegurar, designadamente, a educação através da Internet e a utilização crescente de serviços públicos digitais.
3. O serviço público de comunicação social audiovisual contribui para a educação digital dos utilizadores das várias faixas etárias e promove a divulgação da presente lei e demais legislação aplicável.
Artigo 12.º
Direito à identidade e outros direitos pessoais
1. Todos têm direito à identidade pessoal, ao bom nome e à reputação, à imagem e à palavra, bem como à sua integridade moral em ambiente digital.
2. Incumbe ao Estado:
a) Combater a usurpação de identidade e incentivar a criação de plataformas que permitam o uso pelo cidadão de meios seguros de autenticação eletrónica;
b) Promover mecanismos que visem o aumento da segurança e da confiança nas transações comerciais, em especial na ótica da defesa do consumidor.
3. Fora dos casos previstos na lei, é proibida qualquer forma de utilização de código bidimensional ou de dimensão superior para tratar e difundir informação sobre o estado de saúde ou qualquer outro aspeto relacionado com a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a filiação sindical, bem como dados genéticos, dados biométricos ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa.
Artigo 13.º
Direito ao esquecimento
1. Todos têm o direito de obter do Estado apoio no exercício do direito ao apagamento de dados pessoais que lhes digam respeito, nos termos e nas condições estabelecidas na legislação europeia e nacional aplicáveis.
2. O direito ao esquecimento pode ser exercido a título póstumo por qualquer herdeiro do titular do direito, salvo quando este tenha feito determinação em sentido contrário.
Artigo 14.º
Direitos em plataformas digitais
1. Na utilização de plataformas digitais, todos têm o direito de:
a) Receber informação clara e simples sobre as condições de prestação de serviços quando utilizem plataformas que viabilizam fluxos de informação e comunicação;
b) Exercer nessas plataformas os direitos garantidos pela presente Carta e na demais legislação aplicável;
c) Ver garantida a proteção do seu perfil, incluindo a sua recuperação se necessário, bem como de obter cópia dos dados pessoais que lhes digam respeito nos termos previstos na lei;
d) Apresentar reclamações e recorrer a meios alternativos de resolução de conflitos nos termos previstos na lei.
2. O Estado promove a utilização pelas plataformas digitais de sinaléticas gráficas que transmitam de forma clara e simples a política de privacidade que asseguram aos seus utilizadores.
Artigo 15.º
Direito à cibersegurança
1. Todos têm direito à segurança no ciberespaço, incumbindo ao Estado definir políticas públicas que garantam a proteção dos cidadãos e das redes e sistemas de informação, e que criem mecanismos que aumentem a segurança no uso da Internet, em especial por parte de crianças e jovens.
2. O Centro Nacional de Cibersegurança promove, em articulação com as demais entidades públicas competentes e parceiros privados, a formação dos cidadãos e empresas para adquirirem capacitação prática e beneficiarem de serviços online de prevenção e neutralização de ameaças à segurança no ciberespaço, sendo para esse efeito dotado de autonomia administrativa e financeira.
Artigo 16.º
Direito à liberdade de criação e à proteção dos conteúdos
1. Todos têm direito à livre criação intelectual, artística, científica e técnica, bem como a beneficiarem, no ambiente digital, da proteção legalmente conferida às obras, prestações, produções e outros conteúdos protegidos por direitos de propriedade intelectual.
2. As medidas proporcionais, adequadas e eficazes com vista a impedir o acesso ou a remover conteúdos disponibilizados em manifesta violação do direito de autor e direitos conexos são objeto de lei especial.
Artigo 17.º
Direito à proteção contra a geolocalização abusiva
1. Todos têm direito à proteção contra a recolha e o tratamento ilegais de informação sobre a sua localização quando efetuem uma chamada obtida a partir de qualquer equipamento.
2. A utilização dos dados da posição geográfica do equipamento de um utilizador só pode ser feita com o seu consentimento ou autorização legal.
Artigo 18.º
Direito ao testamento digital
1. Todas as pessoas podem manifestar antecipadamente a sua vontade no que concerne à disposição dos seus conteúdos e dados pessoais, designadamente os constantes dos seus perfis e contas pessoais em plataformas digitais, nos termos das condições contratuais de prestação do serviço e da legislação aplicável, inclusive quanto à capacidade testamentária.
2. A supressão póstuma de perfis pessoais em redes sociais ou similares por herdeiros não pode ter lugar se o titular do direito tiver deixado indicação em contrário junto dos responsáveis do serviço.
Artigo 19.º
Direitos digitais face à Administração Pública
1. Perante a Administração Pública, a todos é reconhecido o direito:
a) A beneficiar da transição para procedimentos administrativos digitais;
b) A obter informação digital relativamente a procedimentos e atos administrativos e a comunicar com os decisores;
c) À assistência pessoal no caso de procedimentos exclusivamente digitais;
d) A que dados prestados a um serviço sejam partilhados com outro, nos casos legalmente previstos;
e) A beneficiar de regimes de «dados abertos» que facultem o acesso a dados constantes das aplicações informáticas de serviços públicos e permitam a sua reutilização, nos termos previstos na lei;
f) De livre utilização de uma plataforma digital europeia única para a prestação de acesso a informações, nos termos do Regulamento (UE) 2018/1724 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 2 de outubro de 2018.
Artigo 20.º
Direito das crianças
1. As crianças têm direito a proteção especial e aos cuidados necessários ao seu bem-estar e segurança no ciberespaço.
2. As crianças podem exprimir livremente a sua opinião e têm a liberdade de receber e transmitir informações ou ideias, em função da sua idade e maturidade.
Artigo 21.º
Ação popular digital e outras garantias
1. Para defesa do disposto na presente lei, a todos são reconhecidos os direitos previstos na legislação referente à ação popular, devidamente adaptada à realidade do ambiente digital.
2. O Estado apoia o exercício pelos cidadãos dos direitos de reclamação, de recurso e de acesso a formas alternativas de resolução de litígios emergentes de relações jurídicas estabelecidas no ciberespaço.
3. As pessoas coletivas sem fins lucrativos que se dediquem à promoção e defesa do disposto na presente Carta têm o direito a obter o estatuto de utilidade pública, nos termos da legislação aplicável às entidades de caráter cultural.
4. Os direitos assegurados em processo administrativo em suporte eletrónico, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 64.º do Código do Procedimento Administrativo, são objeto de legislação própria, a aprovar no prazo de 180 dias após a entrada em vigor da presente lei.
Artigo 22.º
Direito transitório
Até à entrada em vigor da lei prevista no n.º 2 do artigo 16.º são aplicáveis as normas vigentes que regulam o impedimento do acesso ou remoção de conteúdos disponibilizados em violação do direito de autor e direitos conexos.
Artigo 23.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor 60 dias após a sua publicação.
Convite à ação
Para além de elencar um conjunto muito abrangente de princípios fundamentais a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital também não deixa de ser um desafio implícito à comunidade de profissionais ligados à indústria digital.
Um desafio para ela própria contribuir para que se passe das palavras à ação e estas se tornem efetivamente uma realidade. Um desafio para que todos os dias, nas mais estratégicas ou técnicas decisões, cada profissional possa questionar o impacto das suas ações na construção do bem comum e no usufruto de todas as pessoas dos produtos e serviços digitais essenciais hoje ao seu quotidiano.
Fotografia © Pawel Czerwinski (Unsplash)