Diferenças do trabalho de UX nos setores público e privado

Por muitas analogias ou metáforas que se possam utilizar para ilustrar e definir a área de trabalho do user experience (UX), não será muito difícil que em muitos desses exercícios, existam alguns denominadores comuns. Ideias simples, explicadas de uma ou outra forma, que independentemente da abordagem na definição do conceito de UX terão que estar invariavelmente sempre presentes na equação.

Apesar de se poder levantar algumas dúvidas, sobre quais as fronteiras concretas de uma área de trabalho como o user experience (UX), especialmente em relação com outras áreas, existem conceitos que lhe são absolutamente intrísecos.

A importância do contexto

Dos muitos conceitos geralmente associados à definição de UX, o contexto será por ventura um dos mais comuns e que levanta menos dúvidas. Apesar disso, é importante olhar para a importância do contexto no UX com alguma cautela e também com uma visão mais abrangente. Na definição de qualquer experiência digital o contexto dessa mesma experiência é completamente determinante, pois em muitos casos é isso que define o seu sucesso ou insucesso.

O conceito de contexto em UX poderá ter várias leituras e aplicabilidades. Na sua essência quando falamos de contexto em user experience, estamos por norma a falar de tudo aquilo que rodeia a experiência em si. Dispositivos digitais ou espaços presenciais em que é realizada, necessidades concretas do utilizador em cada momento na sua relação mais abrangente com a marca, diferentes intervenientes que podem dar suporte ou apoiar momentos específicos da experiência digital, pré-requisitos relevantes para o sucesso da experiência, etc.

Na prática, tudo o que não sendo intrínseco da própria experiência digital, mas que possa afetar de forma determinante essa mesma experiência e o seu impacto e relação com os utilizadores.

O contexto das equipas

Contudo, existe um outro contexto, um pouco longe da definição anterior, que é importante ter em conta quando falamos da implementação de processos e ferramentas de UX em determinadas organizações ou empresas: o contexto da própria equipa de UX. A busca pela construção de experiência de excelência, deve servir antes de tudo, para colocar o utilizador no centro das experiências. Mas, nada disso acontece em espaços agnósticos ou desligados da realidade de cada organização ou empresa.

É fundamental ter sempre em atenção que o próprio contexto da equipa de UX, influencia em muito, para o bem e para o mal, aquilo que são as suas práticas e abordagens. Embora todo o contexto, neste caso interno das organizações e empresas, possa evoluir com o tempo, ter uma clara noção das limitações e mais-valias, é meio caminho andando para a implementação de processos e ferramentas eficazes.

Setores público e privado

Ao contrário daquilo que o senso-comum possa pensar, trabalhar uma área como o user experience (UX) num contexto privado, especialmente em lógicas de agência ou produto digital, é muito diferente de o fazer no contexto de uma entidade pública. Embora na sua essência os processos e ferramentas sejam similares, o contexto e implicações em que se desenvolve a relação do UX com as demais equipas das organizações e empresas, tem alguns aspectos particulares e que carecem de alguma atenção.

Comparar diferentes contextos, especialmente tão díspares como os dos setores público e privado, é sempre um exercício complexo e bastante falível. Apesar disso, com toda a humildade e assunção de erro possível, o exercício ajuda a colocar em comparação direta a aplicação de alguns conceitos comuns ao trabalho de UX nestes dois setores e que podem ajudar a ilustrar algumas das suas diferenças.

Setor privado

  • Pessoas: utilizadores
  • Finalidade: gerar negócio
  • Concorrência: mercado
  • Relação: utilizadores; colaboradores; managers; executivos
  • Parcerias: departamentos internos; parceiros de negócio
  • Decisão: orientada ao negócio
  • Acessibilidade: facultativa
  • Impacto: sectorial

Setor público

  • Pessoas: cidadãos
  • Finalidade: servir os cidadãos
  • Concorrência: inexistente
  • Relação: utilizadores; colegas; dirigentes; decisores políticos
  • Parcerias: outras entidades públicas; parceiros institucionais
  • Decisão: ponderada e consensual
  • Acessibilidade: obrigatória
  • Impacto: transversal

A tabela resume de forma muito simples uma comparação direta segundo vários conceitos entre os setores público e privado. Apesar disso, importa em cada um desses conceitos, clarificar algumas premissas comparativas, para que a sua compreensão seja a mais clara e objetiva possível.

Pessoas

As palavras têm o poder que têm e esta interpretação está longe de ser consensual mas, se no setor privado faz sentido denominar as pessoas a quem de destina a experiência de utilizadores, no contexto público, pode ser importante não esquecer que estes utilizadores são também cidadãos, logo a sua relação, grau de compromisso e sentido de pertença com a experiência digital que estamos a trabalhar, é bastante diferente.

Finalidade

No que toca à finalidade da experiência digital a diferença entre os dois setores é bastante evidente. Se no setor privado, de uma maneira ou de outra na esmagadora maioria dos casos, o objetivo final é gerar mais e melhor negócio, no setor público a finalidade última passará sempre por servir as várias necessidades dos cidadãos no seu dia-a-dia, sem nenhuma relação com algum tipo de negócio que isso possa gerar.

Concorrência

A concorrência ou comparação com outros da experiência digital que possamos estar a trabalhar no setor privado é sempre uma premissa de trabalho bastante relevante. Um dos grandes objetivos passa quase sempre por acrescentar valor face às demais propostas do mercado. Acontece se isto é fundamental no setor privado atendendo a que a finalidade última é sempre gerar mais e melhor negócio, no setor público isto não se coloca de todo. Embora se possam traçar várias comparações essencialmente no panorama internacional, com soluções de outros governos, essa comparação não afecta em nada o impacto ou relevância da experiência digital junto dos cidadãos.

Relação

A diferença de contextos entre os setores público e privado é tão ao mais evidente, quando falamos nos perfis de intervenientes com os quais se tem que relacionar a equipa de UX. No caso do privado, para além dos utilizadores finais que devem ter um papel preponderante no projeto é fundamental manter a relação aberta e fluída com todos os intervenientes dos vários níveis de decisão da organização ou empresa, sejam eles colaboradores, managers ou mesmo executivos. Por outro lado, no setor público, para além dos utilizadores, que neste contexto adoptam a designação de cidadãos, dos colegas e dirigentes das várias entidades da Administração Pública é fundamental manter um trabalho articulado com todos os decisores políticos relacionados. Muitas decisões (se não quase todas) no setor público têm uma dimensão política, por isso é muito importante que essas decisões estejam não só integradas numa estratégia o mais transversal possível, mas também integrem os contributos dos vários espaços democráticos.

Parcerias

Dificilmente alguma organização ou empresa, pode no contexto atual, viver fechada em si mesma. Seja em que área for e dependente da experiência digital que se esteja a construir em cada momento, será necessário conseguir trabalhar em parceria com diferentes agentes. Se no caso do setor privado essas parcerias acontecem essencialmente entre os vários departamentos internos das organizações e empresas e muitos dos seus parceiros de negócio numa série de áreas, no caso do setor público para além dos parceiros institucionais da sociedade civil, poderá ser necessário um trabalho de parceria entre várias entidades públicas. Facilmente muitas das experiências digitais que envolvem os cidadãos, exigem um trabalho em conjunto de muitas entidades públicas, cada qual com o seu contexto, processos e equipas e que é fundamental saber articular em cada projeto.

Decisão

Os processos de tomada de decisão são outro dos grandes pontos que diferem nos dois setores. Naturalmente no setor privado, todo o processo de decisão toma como referência o mercado em várias vertentes. Seja a concorrência, contexto económico ou tendências de consumo, tudo isto são referências importantes na hora de decidir. Por outro lado, no setor público, o processo de tomada de decisão para além de ter que ser bastante ponderado, pois as decisões têm um impacto direto na vida de milhões de cidadãos, devem ser tomadas de forma o mais consensual possível, articulando estratégias de diferentes quadrantes e tomando como referência também a “voz do cidadão”. No setor público, o desafio passa sempre por articular este processo de tomada de decisão ponderado e consensual com aquilo que é a exigência e urgência das necessidades dos cidadãos.

Acessibilidade

Não deveria ser bem assim, mas a verdade é que a acessibilidade no setor privado constitui-se ainda como um elemento facultativo de muitas experiências digitais. Não só pelo quadro legal ser bastante mais benevolente do que para o setor público, onde o trabalho da acessibilidade é completamente obrigatório, mas porque a cultura para a construção de experiências digitais verdadeiramente acessíveis no setor privado, tem ainda um longo caminho que percorrer.

Impacto

Por fim, um outro ponto de comparação que pode ser traçado no trabalho do UX entre os setores público e privado é o impacto que isso tem na vida das pessoas. Não se trata de uma comparação simplesmente pelo número de pessoas a que se destina a experiência digital, mas sim à sua transversalidade face aos vários grupos sociais. Sendo que no caso do setor privado enquanto o impacto será sempre circunscrito a determinados setores, dependendo do perfil de utilizadores a que se destina a marca, no caso do setor público a abrangência e impacto do trabalho de UX pouco terá que ver com o enquadramento económico ou social das pessoas a que se destina.

Influências e missões partilhadas

Embora o contexto, possa criar algumas diferenças naquilo que é o trabalho da equipa de UX mas também na relação com os demais intervenientes do projeto, é muito importante não compartimentar em demasia cada conceito. O contexto atual, constitui-se essencialmente como um desafio transversal à procura constante de novas formas de pensar, desenhar e desenvolver experiências digitais.

O contexto atual, desafia não só todas as entidades do setor público a procurarem novas formas de trabalhar, mas também todas as organizações e empresas a perceberem os verdadeiros propósitos da sua missão e proposta de valor. Mais que definir este ou aquele contexto como privado ou público, o principalmente desafio passa por reconhecer as mais-valias de cada situação, aprender e procurar sinergias, sejam estas dentro da própria equipa, organização, empresa ou entidade pública, sempre em benefício daquilo que é imutável em qualquer experiência digital, as pessoas.

Fotografia © Bram Kunnen (Unsplash)