Sem nenhum tipo de ofensa a todas as “primas” ou sentido pejorativo, arriscaria a dizer que muitos de nós, num momento ou outro da carreira, depois de lançado o resultado de mais um projeto, possamos já ter pensado, especialmente quando o feedback é negativo, “e se fosses criticar o trabalho da tua prima?”. Numa reação extemporânea ao feedback das pessoas ao verem o resultado do nosso trabalho, é natural e humano que o primeiro impulso possa ser de negação ou até mesmo de repúdio por essas opiniões negativas.
É importante dizer que estamos a falar de terrenos muito “pantanosos”, com conceitos e visões bastante díspares e que podem gerar uma fervorosa e apaixonada discussão. A reação ao feedback, especialmente o negativo e a definição onde termina a opinião pessoal construtiva e começa a destrutiva, são fronteiras muitas vezes difíceis de demarcar e que podem despertar emoções contraditórias nas equipas de projeto.
Feito para ser usado e criticado
O design em geral e o design de produtos digitais em particular, pressupõe uma ideia simples, mas que muitas vezes está na base de um convívio difícil com o feedback negativo. Os produtos digitais que pensamos, desenhamos e desenvolvemos são feitos para serem utilizados pelas pessoas. É por elas e para elas que esses produtos digitais existem. Por consequência, é fundamental estar mentalmente preparado para que o produto digital se relacione com as pessoas a quem se destina e pelo caminho receber o seu feedback, seja ele positivo ou nem tanto.
É uma relação que se vai construindo com tempo e atenção. A metáfora da relação é muito poderosa porque encerra em si uma série de conceitos interessantes também no contexto dos produtos digitais. Numa relação é importante ouvir o que nos é dito. Numa relação é importante tentar perceber a perspetiva da outra pessoa. Numa relação é importante mudar para melhor. Assim também o é nos projetos de produtos digitais, sem dramas nem emoções tempestivas.
Reações ao feedback negativo
Mas tentemos deixar as emoções um pouco de lado e procuremos olhar para a questão do feedback negativo a um produto digital de forma mais racional. O momento em que esse feedback negativo começa a surgir é um ponto de viragem para tudo o que acontecerá a seguir. Este ponto de viragem terá não só impacto no futuro do produto digital em si, mas constitui-se também como uma oportunidade valiosa de aprendizagem para qualquer profissional. No momento em que as pessoas começam a manifestar opiniões negativas, por norma, existem muitas coisas, todas igualmente importantes, que podem acontecer na cabeça de um profissional e para as quais devemos dar a devida atenção.
1. Desvalorizar as pessoas
Uma das reações mais comuns, passa por simplesmente desvalorizar as pessoas que nos estão a dar esse feedback, colocando em causa o seu conhecimento do produto digital em si ou até das competências técnicas que possam ter para estruturar uma opinião sobre o trabalho desenvolvido.
2. Desculpar o resultado final
Outra forma de olhar para o feedback negativo é desculpabilizar o resultado final pelos constrangimentos de tempo ou orçamento a que o produto digital estava sujeito, desculpando pelo caminho também alguma coisa que possa não estar a funcionar tão bem.
⚠️ Mas cuidado com esta desculpabilização! As pessoas não querem nem têm que estar sujeitas às vicissitudes do projeto, o produto digital que estamos a construir será tão ou mais relevante conforme a capacidade da equipa de superar esses desafios e oferecer algum tipo de valor acrescentado às pessoas a quem se destinado o produto.
3. Atenção desproporcionada
Podemos ainda de forma exagerada dar uma atenção desproporcionada a esse feedback negativo e colocar em causa todo o trabalho desenvolvido, embarcando em ciclos de alterações extemporâneas, pouco refletidas e realizadas de forma completamente circunscrita, sem nenhuma articulação com a visão transversal do produto digital.
4. Ignorar tudo e todos
Não tão comum, mas ainda assim possível, podemos tentar “meter a cabeça” na areia, desligar o telemóvel e as aplicações de mensagens, apagar o email e continuar o projeto como se nada tivesse acontecido e não conhecêssemos nenhum feedback negativo.
5. Aprender e iterar
Por fim, eventualmente a opção mais inteligente, com toda a calma do mundo de forma estruturada e organizada, podemos olhar para todo o feedback, especialmente o negativo, mesmo aquele mais tempestivo e tentar perceber que tipo de aprendizagens e informações poderemos daí retirar e que possam de alguma forma melhorar o produto digital que estamos a construir.
Confiança no feedback negativo
Ainda que possamos olhar para o feedback negativo de forma construtiva, tentando daí retirar aprendizagens e percebendo que tipo de iterações podem ser relevantes fazer no futuro, esse tipo de feedback causa quase sempre algum desconforto às equipas de projeto.
Ninguém gosta de ser falado pelas piores razões. É natural e humano. Contudo, também é igualmente importante ter confiança no percurso desenvolvido no projeto até chegar à solução atual. Acreditar que o ponto de evolução a que se chegou em determinado momento do produto digital é o melhor compromisso possível face a todos os fatores envolvidos, é um excelente ponto de partida para encarar algum tipo de feedback negativo que possa surgir.
Para encarar esse feedback negativo com confiança, existem também algumas ideias simples que pode ajudar ter bem presentes nestes momentos. Conceitos ou dinâmicas essenciais à construção de qualquer produto digital, muitos deles invisíveis às pessoas, mas que acabam por ser pontos cardeais essenciais na orientação da estratégia de curto, médio e longo prazo das equipas.
1. Confiança no processo
Uma das, se não a principal ferramenta, no projeto de um produto digital é o seu processo (ou a falta dele). O processo consciente e estruturado de pensamento, desenho e desenvolvimento de qualquer produto digital é em última análise, um dos fatores mais importantes para o seu sucesso. É o processo que dá às equipas, mesmo quando surge algum tipo de feedback negativo, a confiança que o trabalho foi bem feito.
É o processo que dá a confiança que foram percorridos vários momentos fundamentais, que se envolveu todas as equipas necessárias, se ouviu as necessidades das pessoas e se soube gerir da melhor forma todos os constrangimentos a que o projeto estava sujeito.
2. Visão transversal
Por muito fiéis que possam ser as pessoas a utilizar o nosso produto digital elas terão sempre uma visão circunscrita de todo o projeto que está por detrás. É importante não esquecer que o feedback, positivo ou negativo, que nos possam dar sobre o produto será sempre alicerçado por esse conhecimento particular. Não raras vezes, as soluções atuais antevêem evoluções futuras e relação com um sem fim de peças circundantes.
O facto de uma funcionalidade ser como é, pode estar intimamente ligado com uma série de fatores, alguns deles não estando relacionados com o produto digital em si. Não podendo isso ser uma desculpa, cabe à equipa de projeto, tentar minimizar ao máximo essas dificuldades e saber gerir tudo isto da forma mais equilibrada possível, traduzindo isso numa experiência de utilizador de excelência.
3. Perfis de utilizadores
Nem todos os produtos são para todos os utilizadores. Aliás, definir o perfil de utilizador de um produto digital como “é para todos” é o primeiro passo para a desgraça, quer isto dizer, é o primeiro passo para ninguém ficar satisfeito com o resultado final. Todos os produtos digitais têm os seus perfis de utilizadores. Perfis esses com necessidades, anseios, problemas e desejos diferentes.
Definir esses perfis de utilizadores e construir um produto digital que de forma iterativa possa ir procurando corresponder a um por um, pode ser uma abordagem inteligente de hierarquizar o trabalho e evoluir.
4. Pesquisa permanente
Nenhum produto digital pode ter sucesso se não ouvir e envolver as pessoas que o vão utilizar. Este é um ponto indiscutível e incontestável. Por mais voltas que se queira dar e desculpas que se queiram arranjar, não realizar ao longo do projeto trabalho de pesquisa com as pessoas, é um contributo muito grande para que o feedback ao produto digital seja terrível.
De nada serve colocar à disposição das pessoas milhares de funcionalidades que elas não precisam ou com uma usabilidade altamente condestável ainda para mais se não for testada. A pesquisa permanente, é também uma das ferramentas mais importantes para que a equipa tenha a confiança, que embora possa surgir um ou outro feedback negativo, o trabalho foi bem feito e envolveu com toda a humildade os perfis de utilizadores a quem se destina em cada momento.
5. Decisões baseadas em evidências
Por fim, mas não menos importante, os processos de tomada de decisão no projeto não podem ser realizados com base no “achómetro”. É comum acreditar que a disciplina de user experience (UX) pode também ser caracterizada como o design baseado em evidências. São precisamente estas evidências, que ajudam em muito, nos momentos em que surge o feedback negativo, a se ter a confiança que a decisão por detrás de cada solução foi tomada com certeza e conhecimento.
Decisões tomadas com base no “achómetro” são meio caminho andando para a desconfiança na solução. Mesmo não sendo infalíveis, as decisões tomadas com base em evidências, são um contributo fundamental para um processo de trabalho sustentado pelo conhecimento, mais que por opiniões pessoais.
Nenhum produto está acabado
Existe uma expressão que é difícil conjugar com um projeto de pensamento, desenho e desenvolvimento de um produto digital, que é “está fechado”. Nada num produto digital está fechado. Tudo é iterativo e evolutivo, por muito difícil que isso possa ser de gerir. Todo o feedback, positivo ou negativo, é um contributo valioso para a avaliação do produto.
Cabe às equipas de projeto de forma estruturada e confiante, ouvir as pessoas que utilizam os seus produtos digitais, aprender com isso e gerir todos os constrangimentos a que o projeto está naturalmente sujeito, mas tendo sempre como objetivo e ambição a construção experiências digitais extraordinárias.
Fotografia © Anne Nygård (Unsplash)