O efeito borboleta da imprensa

Dada como um bem adquirido nos dias de hoje pela generalidade das sociedades (mas não todas), a liberdade de expressão protagonizada pela imprensa livre e plural, constitui-se como uma conquista muito maior do que aquela que possa transparecer à primeira vista.

Uma sociedade incapaz de discutir abertamente sobre os mais variados temas que lhe dizem respeito ou que não tem forma de partilhar o conhecimento adquirido, constitui-se à partida numa democracia debilitada. Seja na expressão de opiniões ou da disseminação de descobertas, a imprensa (nas suas mais variadas formas) ocupa um lugar de extrema importância nas sociedade contemporâneas.

Mas, até chegarmos à imprensa que conhecemos hoje o caminho foi longo. Não só pelo desenvolvimento tecnológico, mas também pela evolução do próprio propósito da imprensa em cada momento histórico, assistimos a um efeito borboleta desta invenção numa série de vertentes da vida do quotidiano ao longo do tempo.

A invenção de Gutenberg

Na história da imprensa, é bastante comum atribuir (e com razão) a Gutenberg um papel preponderante. Embora se sirva na sua invenção de muitas tecnologias de outras épocas, a verdade é que Johannes Gutenberg teve a genialidade e o engenho de as conseguir conciliar num único meio, a imprensa.

É curioso perceber, que também no caso da invenção de Gutenberg (como em muitas outras invenções) o contexto social e económico em que vivia teve uma influência decisiva. Gutenberg era natural de Mainz, uma cidade alemã que fica no vale do rio Reno. Zona muito ligada à produção vitivinícola onde as prensas de vinho eram um instrumento de trabalho recorrente. Conhecendo as artes e ferramentas da vindima, Gutenberg inspirou-se nesta realidade para chegar aquela que seria a sua prensa tipográfica e que estaria indubitavelmente na origem daquilo a que hoje chamamos de imprensa.

Pela importância que a religião tinha na época, não é de estranhar que a primeira publicação a ser impressa por Gutenberg tenha sido a Bíblia. Impressa na cidade de Mainz em latim no decorrer do ano de 1455, esta primeira publicação ficaria conhecida como a Bíblia de Gutenberg. Apelidada por David Riesman como a “pólvora da mente”, a invenção de Johannes Gutenberg protagoniza a liberalização do conhecimento através da escrita, escancarando as portas para uma nova era.

Buchdrucker de Jost Amman © Wikipedia

A imprensa e a ciência

A invenção de Gutenberg potenciou não só a democratização do conhecimento (bem antes da internet), mas também a sua partilha exponencial. O conhecimento, fruto de descobertas científicas podia agora ser publicado, partilhado e discutido com um amplo leque de outros cientistas. As descobertas de uns poderiam ser comprovadas ou refutadas por outros.

Foi este facto que levou por exemplo a que embora sempre condenadas pela Igreja, as descobertas de Copérnico ou Galileu, se afirmassem perante o mundo, pois através da sua divulgação por meio da imprensa, poderiam ser comprovadas através da experimentação por “qualquer um”.

A imprensa e os descobrimentos

A comunicação social, tal como a conhecemos hoje, estava ainda num futuro longínquo, mas com a imprensa nascia também o embrião daquilo que mais tarde viria a ser conhecido como o jornal. Meios que ajudavam naquela época a espalhar os relatos de descoberta de “outros mundos” que corriam por toda a parte aliciando reis e senhores a lançarem-se nessa aventura, com uma promessa de riqueza que se encontra para lá dos mares.

O homem sempre ansiou alcançar aquilo que não conhece especialmente quando isso desperta a sua imaginação. Não só, mas também isso explica, o sucesso que teve o primeiro relato impresso da viagem de Colombo ao Novo Mundo, campeão de vendas em 1493, da qual foram feitas inúmeras edições em várias línguas diferentes.

Para além da tradição oral que transmitiu histórias durante décadas, existia agora um meio que ajudava a espalhar histórias de “coisas nunca vistas” e que alimentavam a imaginação das pessoas. Ao mesmo tempo que se partia para a Era das Descobertas e se liam relatos dessas descobertas em várias línguas, a língua vincava um sentimento de pertença nacional. Para lá das fronteiras, a língua de um país afirmava-se igualmente como um fronteira e símbolo da identidade nacional.

A imprensa e a alfabetização

Todo e qualquer conhecimento poderia agora ser transformado num suporte escrito. Contudo, existia ainda uma barreira quase intransponível, a alfabetização. Privilégio durante séculos dos membros do clero, a alfabetização era a barreira que seria necessário quebrar para que a imprensa de Gutenberg pudesse efetivamente chegar a todas as pessoas.

O mundo tinha mudado. O conhecimento não podia continuar a estar restrito a um punhado de pessoas. A humanidade pelo seu percurso histórico e tecnológico queria dar o passo seguinte no caminho da democratização do conhecimento. São muitas destas motivações que explicam o aparecimento da educação pública. Era necessário letrar a população. A população exigia ser letrada. Depressa um conhecimento que era moroso de adquirir tornou-se bastante comum e ao alcance do mais “mortal dos seres”, deixando o conhecimento de estar encerrado em locais quase seculares. Qualquer pessoa podia agora ter em sua casa um “acervo” de conhecimento sobe a forma de uma pequena biblioteca.

A imprensa e a democracia

A população era cada vez mais educada e como tal as suas exigências naturalmente tornaram-se outras, com a alfabetação vieram as preocupações sociais e por consequência o seu interesse pelos processos de tomada de decisão. A visão democrática das sociedades reforça-se naturalmente no seguimento de todo este processo, pois com a alfabetização do povo, era possível um maior envolvimento na vida pública e no debate do bem comum.

A ligação da educação à democracia é absolutamente umbilical. As sociedades mais cultas, são por norma aquelas onde a participação democrática no bem comum tem maior expressão e isso não é uma mera coincidência.

A imprensa enquanto negócio

Desde o seu inicio que a imprensa sempre teve o poder de criar e moldar opiniões. Para lá das novas descobertas científicas, com um valor completamente altruísta e desinteressado, a imprensa ao longo da história fez um caminho no sentido de se tornar também um negócio. Se olharmos para as estruturas das sociedades de outras épocas ou das atuais, o poder nunca está muito longe de quem controla da imprensa.

Podemos e devemos questionar a legitimidade desta relação. Afinal de contas uma coisa que nasceu para democratizar a informação e o conhecimento, acaba por ser utilizada na “modelação” da opinião pública, muitas vezes em sentidos bastante perversos. O desafio de hoje não é (eventualmente) o da alfabetização do povo. Contudo, os desafios da imprensa agora não são menores daqueles de outras épocas na história.

O efeito borboleta

Olhar isoladamente para uma época sem perceber o desenrolar dos acontecimentos, traduz-se quase sempre numa visão circunscrita da história. No ciclo da história, perceber as relações de uns factos com outros, mesmo que por vezes mais longínquos, é absolutamente fundamental. As descobertas de uns serão os argumentos de outros. A descoberta de Gutenberg, serviu não só de motor à Era das Descobertas mas também amplificou em muito a doutrina de Lutero. Por sua vez o aumento da partilha do conhecimento motivou a curiosidade das pessoas provocando a criação da educação pública, facto indissociável da evolução da democracia nas sociedades contemporâneas.

Fotografia © Domingo Alvarez (Unsplash)