Pode parecer provocatório e na prática até é, associar na mesma frase uma das aplicações mais conhecidas do mundo, o Tinder, e o conceito da democracia. A dada altura a relação entre ambos, pode até para além de provocatória, parecer descabida. Ou talvez não.
Pode parecer confuso, mas a verdade é que uma aplicação como o Tinder, pode trazer algumas pistas para a reflexão daquilo que deve ser a participação democrática no futuro dos cidadãos. A relação está longe de ser directa ou até mesmo evidente. Mas, quando olhamos para as razões do sucesso da aplicação, no seu sector de mercado naturalmente, é impossível, com alguma criatividade, não tentar imaginar novas formas das instituições democráticas se relacionarem com os cidadãos.
Sobre o Tinder
Mas comecemos pelo princípio. Para os mais distraídos ou aqueles que só ouviram falar do Tinder através de um “amigo”, de forma muito simples, o Tinder é a aplicação de encontros e relacionamentos online mais utilizada no mundo. Criada em 2012 nos Estados Unidos, a aplicação teve ao longo dos anos um crescimento vertiginoso em termos de número de utilizadores. Embora não seja a primeira aplicação do género disponível no mercado, é sem sombra de dúvidas a aplicação que mais notoriedade ganhou, neste tipo de soluções.
Disponível em 190 países e traduzida em 40 idiomas diferentes, os números da aplicação impressionam. Atualmente o Tinder conta com cerca de 57 milhões de utilizadores em todo o mundo, sendo que 5.9 milhões desses utilizadores utiliza uma subscrição paga, segundo dados de 2020 do Business of Apps. Existe ainda um dado adicional sobre os utilizadores que é igualmente importante. Segundo a própria empresa, cerca de 50% dos seus utilizadores têm idades entre os 18 e 25 anos (Geração Z).
Uma das razões do sucesso
Introduzindo uma experiência de utilização completamente disruptiva, face ao panorama dos concorrentes, a aplicação popularizou, a interação do “swipe left” e “swipe right”. Através desta interação muito simples, os utilizadores da aplicação podem manifestar o seu interesse, ou não, pelo perfil de outra pessoa. Poderemos tentar fazer o exercício de procurar perceber o porquê de tanto sucesso. Em todas as explicações que possamos encontrar a experiência e o seu poder no envolvimento dos utilizadores, será sem sombra de dúvidas uma das principais razões de tanto sucesso.
A tecnologia é o que fazemos dela
O tema das redes sociais em geral e das aplicações de encontros em particular é sempre uma temática bastante complexa. Cada um de nós, segundo o seu quadro de valores, terá certamente uma opinião, mais ou menos fundamentada sobre o assunto. Contudo é importante não esquecer que quer gostemos ou não, todas estas ferramentas fazem parte do nosso dia-a-dia. Poderemos ser ou não utilizadores, mas todas estas tecnologias são uma realidade dos nossos tempos. Além do mais, também não nos poderemos esquecer, que muitas destas aplicações têm milhões de utilizadores, o que as torna também bastante representativas da sociedade global que temos hoje.
É importante ainda, quando olhamos para cada uma destas ferramentas, discernir aquilo que são os sinais, positivos ou negativos, dos tempos. O pior que nos pode acontecer é meter a cabeça na areia, não perceber o que está acontecer à nossa volta, não querer ver e muito menos, não querer se quer tirar destas ferramentas, aprendizagens valiosas. Afinal de contas, no final do dia, todas estas tecnologias, são feitas por e para as pessoas e na prática, para o bem e para o mal, elas são o que fazemos delas.

Swipe the Vote
Pode parecer estranha a associação entre a aplicação e o conceito de democracia. Mas, se virmos bem nem é um campo onde o próprio Tinder já não tenha realizado algum trabalho. Estamos hoje, às portas de mais uma eleição presidencial nos Estados Unidos. Conseguimos agora, para além de ter uma opinião sobre a presidência que termina, entrar na “máquina do tempo” e fazer o exercício de tentar lembrar tudo aquilo que se dizia e pensava antes das eleições presidenciais de 2016. Conseguimos também, compreender melhor uma série de coisas que aconteceram na política americana depois das eleições. Entre escândalos, processos judiciais e relações menos claras com outros países, a América viveu nos últimos anos, politicamente falando, tempos muito particulares.
Eleições presidenciais 2016
Em 2016, antes das eleições presidenciais, o Tinder realizou em parceria com uma associação para participação eleitoral dos jovens, não-governamental e sem fins-lucrativos, a Rock The Vote, um estudo com os seus utilizadores denominado de Swipe the Vote. A iniciativa que envolveu essencialmente participantes da geração Millennials de 16 países (EUA, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, França, Alemanha, Índia, Japão, Coreia, México, Rússia, Espanha e Reino Unido) procurava ajudar os utilizadores do Tinder a perceber com qual dos dois candidatos, Hillary Clinton ou Donald Trump, se identificaria mais em termos ideológicos.

A cada utilizador eram apresentadas sete perguntas bastante simples. A cada uma dessas questões o utilizador do Tinder, teria que dar uma de duas respostas possíveis. Através do “swipe left” e “swipe right”, as interações paradigmáticas do Tinder, era possível responder a cada uma das perguntas. No final, utilizando um outro conceito da aplicação, o “match” era apresentado ao utilizador com qual dos dois candidatos se identificava mais, segundo as suas respostas.
Mais do que uma questão de candidatos
Através daquilo que distingue o Tinder, a experiência, foi possível no estudo envolver milhares de utilizadores por todo o mundo com um tema muito pouco sexy, as eleições presidenciais americanas. É importante dizer também, que aquilo que estava principalmente em estudo era a relação de cada utilizador, segundo as suas respostas, com a linha ideológica de cada candidato. Só segundo as respostas dos utilizadores às sete perguntas temáticas, é que depois era dito aos utilizadores com qual dos candidatos se identificava mais. No final no questionário era perguntado também, de forma direta, em qual dos candidatos votaria e aí sim era uma escolha directa de cada utilizador no candidato propriamente dito.
As questões que eram feitas envolviam uma série de tópicos. Temas em discussão na sociedade americana na época e que de alguma forma ajudavam a traçar as fronteiras entre as ideias de cada candidato. A cada utilizador do Tinder, eram feitas questões sobre: impostos, imigração, venda de armas, alterações climáticas, educação, saúde e salário mínimo.

Resultados do estudo
Para além da missão de esclarecimento, um dos resultados mais interessantes do estudo, foi a informação que produziu. Embora a recolha de informação das respostas dos utilizadores fosse completamente anónima, no final do estudo, foi possível consolidar os dados recolhidos e fazer uma análise mais global.
É muito interessante, olhar para estes resultados quatro anos depois. O mais relevante, é o facto de ser possível fazer uma série de paralelismos com inúmeros acontecimentos posteriores e perceber melhor, agora, o contexto de alguns dos indicadores do estudo.



Os cidadãos e a democracia
Poderemos olhar para este caso do Tinder, realizado através da sua aplicação, sobre as eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos sobre diferentes perspectivas. Embora seja também importante, dar-lhe a sua verdadeira importância, pois trata-se tão só de um estudo, a realidade é que a experiência mostra que é possível envolver os cidadãos com os temas que lhes dizem respeito de diferentes maneiras. Pelo menos, na versão mais simplista, ouvir no mínimo as suas opiniões e perspectivas sobre determinados tópicos.
É difícil acreditar que os cidadãos, seja nos Estados Unidos, em Portugal ou qualquer outra parte do mundo, não tenham nenhuma relação com aquilo que é o funcionamento e importância da democracia. A história e os muitos exemplos de participação cívica e democrática na sociedade portuguesa, mostram que isto não é verdade. Contudo, não deixa de ser verdade também, que a vida das instituições, está cada vez mais afastada daquilo que é a realidade dos cidadãos no dia-a-dia.
Seja pela complexidade dos temas, o funcionamento burocrático das instituições, a linguagem muitas vezes hermética ou por muitas outras razões, o afastamento dos cidadãos das instituições que representam a democracia e por consequência da própria democracia, é cada vez maior. E se dúvidas existirem deste afastamento, basta ver o valor da abstenção nas últimas eleições legislativas em Portugal no ano de 2019 que foi de 51,4%. Um em cada dois cidadãos, decidiu não votar. Este dado deve obrigar a uma reflexão muito profunda.
Pistas para a reflexão sobre a democracia
A relação da democracia, das instituições que a representam para com os cidadãos, é por si só um tema bastante complexo. Por um lado é notório o afastamento, mas por outro, ao contrário daquilo que se possa crer, também não é assim tão simples, transformar processos e relações com décadas. Sobre este tema é também fundamental referir, que o conceito de democracia não se circunscreve aquilo que as instituições públicas diz respeito. É importante que a democracia seja encarada de forma estrutural e basilar em tudo o que diz respeito à sociedade. Interessa falar de democracia quando falamos de instituições como a Assembleia da República e todos os seus órgãos sim, mas também na participação da vida de uma qualquer associação não-governamental ou sem fins lucrativos.
Independentemente do contexto, abrangência ou temática, existem algumas pistas que poderão nortear uma reflexão mais profunda sobre a relação, ou melhor dizendo a experiência, dos cidadãos (ou associados) com os “espaços” democráticos. Pistas que mais que não são que conceitos estruturantes daquilo que deve alavancar uma relação mais participada dos cidadãos nos temas que lhe dizem respeito.
Envolver
Qualquer transformação, especialmente relacionada com a experiência democrática dos cidadãos, deve partir de um conceito muito profundo de envolvimento. Mais do que utilizar constantemente o “achómetro”, é fundamental criar espaços de participação e auscultação verdadeiros. Contudo, é importante compreender que o envolvimento é um caminho evolutivo. É impossível termos adultos comprometidos se isso não for algo muito enraizado na sua educação em crianças.
Baden-Powell, um militar inglês que viveu no século XX em Inglaterra e fundador do movimento escutista, tinha um nome para este envolvimento: “ask the boy”. A frase é aterradoramente simples, mas poderosíssima no sentido e mais impactante na aplicação. Afinal de contas, este conceito está na base de um movimento que atualmente integra milhões de jovens de todas as idades um pouco por todo o mundo.
Mas, transpondo-o este conceito para a reflexão da participação democrática, poderíamos questionar, quantas vezes perguntamos às crianças como gostariam que fossem os seus parques infantis? Não deveria uma Junta de Freguesia ou Câmara Municipal, quando realiza um projeto deste género, ter em conta a opinião dos cidadãos que vão utilizar estes espaços? O exemplo é singelo, mas serve para ilustrar na perfeição este conceito do envolvimento, ou a falta dele. Se não começar nas coisas mais simples do quotidiano e em criança, como vamos conseguir ter cidadãos participativos?
Aproximar
Outra ideia essencial nesta reflexão é a aproximação da democracia aos “lugares” on e offline do dia-a-dia dos cidadãos. Existia na antiguidade Grega, um espaço denominado de Ágora, que entre muitas outras coisas, representava de forma muito particular o lugar de encontro dos cidadãos. Fosse para comércio ou debate dos temas que dizia respeito a todos, este era um dos lugares de referência para qualquer cidadão na estrutura da cidade.
Acontece que as “Ágoras” dos nossos tempos são outras. Para além de ser quase impossível dizer que existe um só espaço de encontro, um único espaço onde estão todos os cidadãos, a configuração deste “espaço”, como tão bem sabemos é muito diferente. E por espaços poderemos muito bem falar de todos os lugares que reconhecemos como a “casa da democracia”, mas também todos os outros virtuais que são muitas vezes, para o bem e para o mal, os lugares de debates mais envolventes.
É importantíssimo deixar cair preconceitos relativamente a estes “espaços”. É imprescindível ir ao encontro dos cidadãos nos espaços, nos muitos espaços, onde eles estão. Seja num debate público numa qualquer assembleia ou conselho, mas também no Facebook, no Twitter, no Whatsapp, no Messenger, no Tik Tok, ou quem sabe até, numa aplicação de encontros online como o Tinder.
Simplificar
Outro desafio imenso da experiência democrática do futuro é a simplificação de quase tudo o que envolve esta relação. Seja no discurso, no conteúdo, na forma ou no funcionamento, os cidadãos exigem que tudo isto seja simplificado. Não só porque os temas complexos para ser compreendidos verdadeiramente precisam de ser explicados de forma simples, mas principalmente porque a democracia deveria falar uma linguagem universal, que todos os cidadãos consigam compreender.
E aqui pode ser muito útil voltar ao exemplo do Tinder. O objetivo da aplicação é evidente, contudo o que o Tinder percebeu antes de todos os seus concorrentes é que quanto mais simples for a experiência, mais envolve seria. Quanto mais envolvente for experiência mais participada será. A equação é muito simples.
Por conseguinte, voltando ao tema da democracia, é preponderante simplificar toda a relação com os cidadãos ao essencial, explicando cada tema que lhes diz respeito numa linguagem simples. Porque ter muitos dados é diferente de ter realmente informação. O exercício de simplificação tem tudo que ver com através do envolvimento, perceber o que o realmente preocupa os cidadãos e ir ao encontro das suas necessidades reais do quotidiano.
Esclarecer
Nunca poderemos ver qualquer uma destas pistas de reflexão de forma isolada. Elas constituem sim, um ecossistema de conceitos que se relacionam entre si em simultâneo. Apesar disso, a ideia de uma experiência capaz de esclarecer realmente os cidadãos sobre os temas que lhes dizem respeito é, muito provavelmente, um dos conceitos mais importantes.
Esclarecer é muito diferente de simplesmente responder. Esclarecer alguém sobre determinado tema, implica em última análise, garantir que o cidadão percebeu realmente o que se queria dizer. Responder por outro lado, diz respeito simplesmente, ao ato de dar feedback a determinada questão. Para além de ter implícita uma postura meramente reativa a uma necessidade, muitas vezes não quer dizer que o cidadão que está do outro lado tenha percebido realmente alguma coisa.
Mais do que simplesmente responder, que é fundamental nesta experiência democrática, é importante ter a certeza que conseguimos esclarecer todos os cidadãos sobre os temas que lhes dizem respeito. Apresentando cada tema numa linguagem que estes compreendam de forma muito clara, pedagógica e circunscrita ao essencial de cada tema, sem floreados, meias-palavras ou acessórios desnecessários.
Evoluir
Por fim, talvez a pista mais desconcertante de todas. Nenhuma das pistas anteriores pode estar escrita na pedra. Aliás, se existe coisa que os últimos tempos provaram, foi que nada está escrito na pedra. O contexto que temos hoje pode mudar quase de um momento para o outro. E isso é um desafio claro à evolução pró-ativa, mais do que simplesmente reagir às vicissitudes.
Em toda esta reflexão é preponderante ter noção que tudo isto é um processo dinâmico. O que é hoje de uma maneira amanhã não o será certamente. As instituições e os cidadãos têm que ter a capacidade de transformar e evoluir toda esta relação. As preocupações que temos hoje, são diferentes das que teremos amanhã. As ferramentas que temos hoje, são diferentes das que teremos amanhã. As pessoas que temos hoje, são diferentes das que teremos amanhã. Por exemplo, a geração Z é na essência muito diferente da geração Baby Boomers.
A vida democrática, não deveria ser reflexo também ela de uma sociedade em transformação? Não deveria conseguir representar e acolher todos os cidadãos? As suas preocupações, mas também a sua especificidade e riqueza de pensamento? O caminho da democracia é um percurso interminável. Um ideal em permanente construção e desafio. A memória coletiva, de que o consenso está algures entre a voz particular de cada pessoa e a vontade coletiva. Uma construção constante de direitos, mas também deveres.
Fotografia © Luis Quintero (Unsplash)