Quem tem por hábito ler, mesmo que na vertical, as parangonas dos jornais, não raras vezes (muito mais que noutros tempos) começa a encontrar algumas referências a termos como “transição digital” ou “transformação digital” associados ao Estado e por consequência aos seus serviços públicos digitais. Embora a transformação digital dos serviço públicos do Estado não tenha começado agora, “aquilo que todos nós sabemos o que é” ? veio de forma clara e inequívoca deixar bem à vista as mais-valias e debilidades destes serviços públicos digitais para os cidadãos.
Quem se interesse pelo tema dos serviços públicos digitais, com alguma facilidade conseguirá também encontrar estudos e relatórios sobre a qualidade e relevância destes serviços públicos para os cidadãos numa série de vectores de análise. Toda esta informação é preciosíssima para a evolução dos serviços públicos digitais. Só com um conhecimento profundo do cenário atual é possível definir estratégias e políticas fundamentais para o futuro. Contudo, todo o conhecimento analítico e quantitativo do tema, não pode renegar para segundo plano, a importância de ouvir os cidadãos na primeira pessoa no que às suas preocupações e necessidades sobre os serviços públicos digitais diz respeito.
Cidadãos na primeira pessoa
Ouvir os cidadãos na primeira pessoa e não só através de análises quantitativas, tem um sem fim de vantagens. Para além do contacto directo com quem todos os dias utiliza estes serviços públicos digitais, conhecer o seu contexto de utilização pode se tornar uma ajuda valiosa para a definição, desenho e desenvolvimento de serviços públicos mais eficazes. Para uma análise o mais completa possível, não interessa perceber só quando e como são utilizados os serviços públicos digitais, mais sim porquê e por quem.
A história pessoal por detrás de cada utilização encerra em si muitas aprendizagens que são fundamentais conhecer. Histórias, que por a mais números possamos recorrer nunca nos vão refletir a especificidade de cada pessoa e aqueles aspetos inusitados que numa utilização de serviços públicos digitais diária se tornam pequenos grandes detalhes.
Assim sendo, uma profunda e completa compreensão dos desafios atuais dos serviços públicos digitais, deve também partir da auscultação direta dos cidadãos. Uma cultura de experiência centrada nos cidadãos que só se constroem com dinâmicas permanentes de envolvimento dos cidadãos, compreensão das suas necessidades do quotidiano e exploração das suas ideias e contributos para um Estado, através dos serviços públicos digitais, cada vez mais próximo.
Partir à descoberta
Tentando ir à procura, segundo os cidadãos, dos principais desafios que os serviços públicos digitais hoje enfrentam a ideia partia de uma premissa bastante simples. Se queremos ouvir os cidadãos, não há outra maneira a não ser falar com os cidadãos, neste caso através de um estudo qualitativo composto por várias conversas (entrevistas) com cidadãos. Pessoas de norte a sul do país, sem o conhecimento profundo do funcionamento e organização do Estado e que tenham como única necessidade resolver os seus problemas do dia.
Este estudo teve como principal objetivo, identificar as principais preocupações e necessidades dos cidadãos quando tentam realizar algum tipo de ação com o Estado, através dos serviços públicos digitais atualmente disponíveis, especialmente aqueles da responsabilidade da Administração Central. Por se tratar de uma abordagem qualitativa, não se procurou neste caso encontrar padrões consubstanciados no volume de dados, mas sim, descobrir os aspetos mais característicos e as dificuldades na voz dos cidadãos, quando estes procuram utilizar algum dos serviços públicos digitais disponíveis.
Caracterização do estudo
O trabalho desenvolvido neste estudo, incluiu a realização de 18 conversas (entrevistas) levadas a cabo através de vídeo-chamada, telefone ou mensagens entre os dias 26 de julho e 25 de agosto de 2021. Procurando-se fazer com que as conversas decorressem num tom bastante informal e descomprometido as entrevistas seguiram essencialmente um guião de tópicos pré-definido sobre diferentes temas relacionados com os serviços públicos do Estado (alguns deles correlacionados entre si).
Caracterização da amostra
Tendo a preocupação de abranger uma amostra o mais plural possível, o estudo contactou com cidadãos de várias idades, pontos do país, estratos sociais, escolaridade e profissões. Acrescentado a estas características foram também escolhidos cidadãos que não desenvolvessem no momento nenhuma atividade empresarial, para que existisse um foco quase exclusivo num determinado tipo de perfil de cidadão e interação com o Estado.
O que disseram os cidadãos?
Ouvir os cidadãos na primeira pessoa sobre a sua relação com o Estado através dos seus serviços públicos digitais é sempre um exercício bastante rico e muito revelador da percepção de satisfação. Não é um exercício simples, porque é importante ter a noção que neste momento a percepção geral dos cidadãos face aos serviços públicos digitais, faz-se pela soma das suas várias interações com diferentes entidades públicas.
É no somatório de todas estas interações, umas melhores que outras, que é construído o grau de satisfação geral dos cidadãos face aos serviços públicos digitais do Estado. Neste panorama é notória a diferença entre entidades públicas e isso reflete-se no grau de satisfação dos cidadãos. A par das entidades com um nível de digitalização muito bom, temos outras que só agora começaram o seu caminho evolutivo no digital.
Da realização do estudo, foram identificados 18 conclusões que aqui são apresentadas da forma mais simples possível. Caracterizando-se este estudo por um contacto direto com os cidadãos, cada um dos tópicos apresentados é também acompanhado de uma citação retirada das conversas e que ilustra o sentido de cada conclusão.
Mais uma vez é importante ressalvar que este é um estudo qualitativo e não quantitativo e por isso a importância está na identificação de desafios característicos da utilização dos serviços públicos digitais por parte dos cidadãos e não na quantificação do grau de severidade de cada um dos tópicos identificados.
1. Lojas do Cidadão
Mesmo quando o tema são os serviços públicos digitais, as Lojas do Cidadão, enquanto espaços agregadores de serviços, são referidas e elogiadas bastantes vezes como casos de sucesso no serviço aos cidadãos.
Se tudo fosse tão simples como a Loja do Cidadão estava eu muito bem. Uma pessoa vai lá e o rapazinho da entrada ajuda-me sempre a ir ao sítio certo.
2. Organização do Estado
A generalidade dos cidadãos não compreende a organização do Estado protagonizada pelas diferentes entidades públicas com as quais precisa de se relacionar em vários momentos da sua vida. Para lá dos serviços recorrentes na vida do cidadão, à esmagadora maioria é muito difícil perceber a que entidade pública se deve dirigir se precisar resolver um tema menos recorrente.
Cada vez que tenho que tratar de uma coisa nova é uma confusão. Ando de um lado para o outro feito barata tonta.
3. Modelos de relação muito díspares
É notória, mesmo que restringindo o âmbito de análise aos serviços públicos digitais, a discrepância de modelos de relação das diferentes entidades públicas com os cidadãos. Das muitas soluções tecnológicas de contacto (email, chatbots, plataformas online, áreas reservadas, call centers, etc.) existe um sentimento claro por parte dos cidadãos que ao se relacionarem com diferentes entidades terão que aprender como funcionam os canais digitais dessa entidade.
Se fosse tudo igual era muito mais simples. Vou a um sítio e tem ue ser através de email. Depois vou a outro sítio e já tenho que telefonar para determinado número. Já para não falar na história das marcações que cada sítio tem uma maneira diferente de fazer.
4. Invisibilidade das entidades públicas
Para lá das entidades públicas com maior visibilidade e relevância no dia a dia dos cidadãos como a Autoridade Tributária ou Segurança Social, boa parte das demais entidades públicas é de todo invisível aos cidadãos o que dificulta a realização, quando necessária, de determinados serviços públicos digitais.
Nem sei bem quantas repartições diferentes já vi. De tempos a tempos descubro repartições públicas novas.
5. Sentimento de “ping-pong”
Uma das coisas mais frustrantes para os cidadãos é o “ping-pong” que muitas vezes acontece entre os vários serviços públicos digitais. Serviços do Estado que remetem os cidadãos para outros serviços do Estado ao invés de comunicarem entre si. O ônus da responsabilidade é passado para os cidadãos ao invés de ser resolvido pelo próprio Estado e isso obriga muitas vezes os cidadãos a andarem no caso dos serviços públicos digitais de plataformas em plataformas.
Sabe o que me irrita mesmo? Ter que andar a fazer de pombo correio entre as repartições públicas. Se soubesse o que isso me tira do sério.
6. Descoberta de informação aos poucos
Outro ponto que deixa os cidadãos muitos desconfortáveis é a incerteza permanente se já sabe tudo o que deveria saber para resolver o seu problema. Conforme vai evoluindo na realização dos seus objetivos, vai descobrindo novos dados e informações, o que deixa sempre um sentimento de desconfiança em relação aos serviços públicos digitais.
Parece que aquilo funciona ao deus de ará. Uma pessoa vai a um sitio e diz uma coisa. Vai a outro sítio e diz outra coisa e depois ficamos nós aqui no meio sem saber muito bem o que fazer.
7. Informação contraditória
Não raras vezes, os cidadãos referem também a contradição de informações entre as várias plataformas do Estado o que contribuiu ainda mais para um sentimento generalizado de desconfiança, face à informação que se está a consultar.
Parece que eles não fala uns com os outros. Já vi para o mesmo assunto duas coisas diferentes em dois websites diferentes.
8. Processos opacos
A desconfiança dos cidadãos face aos serviços públicos digitais também se revela pela pouca ou nenhuma transparência nos processos. Por exemplo, aquando do preenchimento de um formulário as mensagens de feedback que são apresentadas são geralmente bastante genéricas e sem informações essenciais para uma correta compreensão dos próximos passos.
Preencho as informações na internet e depois nunca sei se já acabou ou se falta fazer mais alguma coisa para resolver o meu problema. Só tenho um remédio, esperar a ver se aparece alguma carta.
9. Pesquisa Google no Estado
A generalidade das interações dos cidadãos com os serviços públicos digitais, começa no Google com pesquisas bastante abertas, na generalidade dos casos, sem utilizar os termos pelos quais o Estado identifica os serviços públicos digitais.
Quando preciso de saber alguma coisa o primeiro sitio que vou é sempre o Google. Ele lá me manda para o sítio certo.
10. Plataformas muito diferentes entre si
A diferença visual e funcional é igualmente um dos pontos mais notados pelos cidadãos, quando têm necessidade de utilizar diferentes plataformas. Com o hábito de utilização, mesmo no caso de plataformas mais antigas, os cidadãos criam algum tipo de habituação à sua utilização e “sabem onde encontrar o que procuram”, quando têm que utilizar diferentes plataformas, o habituo que criaram na utilização de uma plataforma não tem eco noutras e vice-versa e isso cria um desconforto adicional.
Vou ao site da Segurança Social as coisas estão num sitio. Vou a outro site qualquer já é tudo diferente e tenho que estar a perceber tudo outra vez.
11. Utilização por “tato”
O conhecimento dos cidadãos das plataformas e da utilização dos serviços públicos digitais é feito muitas vezes por “tato”. Quer isto dizer que os cidadãos não compreendem aquilo que têm que fazer ou o que lhes é dito em cada momento, mas sabem que se clicarem num sítio específico para obter o que precisam resolvem o problema que têm no momento.
O Portal das Finanças é velhinho mas eu lá me entendo com aquilo. Já aprendi o sitio das coisas.
12. Dúvidas na credibilidade das plataformas
Principalmente pela diferença visual entre as várias plataformas e por vezes a desatualização da informação disponibilizada, os cidadãos ficam com bastantes dúvidas se a plataforma que estão a utilizar é oficial ou não do Estado.
Cada vez que vejo uma coisa num site fico sempre na dúvida se aquilo estará atualizado.
13. Utilização em dispositivos móveis
A interação em dispositivos móveis, especialmente smartphones, constitui-se na generalidade dos casos como um problema. Entre os vários comentários feitos pelos cidadãos, o tamanho dos elementos interativos, tamanho do texto, a performance de carregamento das páginas e o contraste de cor dos elementos são os pontos mais vezes referidos.
Já desisti de abrir sites do Governo no telemóvel. Aquilo aparece sempre tudo partido ou então é tudo muito pequenino.
14. Ausência de pontos de contacto humanos
Em casos de dúvidas, na realização de alguns dos passos dos serviços públicos digitais, é muito difícil aos cidadãos encontrarem contactos de ajuda a que possam recorrer de forma fácil. Quando isso acontece é por norma um email geral, do qual raramente os cidadãos obtêm resposta ou quando ela existe a demora é tão grande que o problema inicial já foi resolvido por outros canais (especialmente os presenciais ou por telefone).
Nunca percebo como tirar dúvidas. Por norma quando não encontro aquilo que procuro na internet vou à Loja do Cidadão que fica aperto da minha casa.
15. Linguagem muito pouco acessível
Um dos desafios mais vezes elencados por quase todos os cidadãos foi a dificuldade imensa na compreensão da linguagem utilizada nos serviços públicos digitais do Estado. Seja pela excessiva utilização de terminologias técnicas, o redirecionamento para decretos-leis complicados de compreender ou pela utilização de uma linguagem vaga e abstracta, o tema da linguagem é um daqueles que mais preocupa os cidadãos e mais dificuldades levanta.
Parece que estão a falar chinês. Tenho uma dúvida simples e só me dão palha para ler, desisto.
16. Respostas muito vagas
A falta de contexto do contacto e relação dos cidadãos com os serviços públicos digitais, leva muitas vezes a propostas muito vagas. Principalmente na resolução de problemas ou na recolha de informação sobre uma determinada necessidade as soluções apresentadas pelas plataformas ou até mesmo em emails de contacto com as diferentes entidades públicas, sugerem um sem fim de caminhos que obrigam por um lado os cidadãos a tentar perceber se algum deles lhe interessa e por outro o fazem desistir pelo caminho e a recorrer a outro tipo de canais de contacto.
Uma pessoa faz uma pergunta simples e a resposta é sempre um testamento que nunca mais acaba.
17. Grande volume e densidade de informação
Na relação do Estado com os cidadãos através das suas plataformas, um dos pontos recorrentes referidos pelos cidadãos é o volume e densidade de informação disponibilizado. Quase como se de uma equação de “tudo ou nada” se tratasse o Estado encontra-se por norma num de dois extremos. Ou as plataformas são parcas em informação ou aquela que têm está bastante desatualizada, ou bombardeiam os cidadãos com toda a informação e mais alguma (quase toda numa linguagem técnica e incompreensível para a generalidade das pessoas).
Confesso que me chateia um bocado cada vez que tenho que ir à procura de alguma coisa. Parece que não me conseguem responder de forma simples e andam ali às voltas com textos e mais textos.
18. Dependência de terceiros
Os números de utilização crescentes dos serviços públicos digitais, escondem um perigo. Embora esses números sejam bastante significativos, eles camuflam a dependência, especialmente de pessoas mais velhas, de terceiros para a realização de determinadas ações, essencialmente aquelas que são exclusivamente online. Esta dependência, para além de se constituir como uma barreira ao acesso de determinados cidadãos aos serviços públicos, pode encerrar em si também um engano. O objetivo primordial dos serviços públicos não é ter excelentes indicadores de acesso aos serviços públicos digitais, mas sim garantir que todos os cidadãos conseguem resolver as suas necessidades no dia a dia de relação com o Estado da maneira mais simples e direta possível.
Se não fosse o meu filho, não sei como tratava das coisas. Já não tenho idade para estas coisas.
Em caso de dúvida…
Ouvir os cidadãos na primeira pessoa e pela sua própria voz é sempre uma experiência muito reveladora. Com uma visão completamente descomplexada face aos desafios e constrangimentos do dia a dia do Estado na gestão dos serviços públicos digitais, os testemunhos dos cidadãos revelam bem as suas principais preocupações.
É sempre um exercício muito esclarecedor também porque pode ser uma ajuda importante na definição de perspetivas de futuro. O futuro dos serviços públicos digitais é um misto de muitas coisas. Uma visão alargada e crítica para um horizonte de sociedade que está em constante construção, mas igualmente uma resposta concreta às necessidades imediatas das pessoas para o seu quotidiano.
Mas, se dúvidas existirem de qual deve ser o caminho de futuro dos serviços públicos digitais, a solução é simples. Que tal perguntar e ouvir o que têm a dizer os cidadãos?
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