A história recente do design em Portugal em geral e do design gráfico em particular é certo que ainda está por escrever. Melhor dizendo, é uma história que se escreve todos os dias, graças ao trabalho, muitas vezes em contextos difíceis, de milhares de profissionais e equipas. É uma história que ela própria está à procura da sua história. De fronteiras e estilos em exploração e ainda às voltas com a questão identitária, se existe ou não um “estilo nacional” único para o design gráfico português.
Para lá dos debates identitários sobre o design gráfico português, existe também um desafio à memória. A história, seja do que for, não tem só a missão de eternizar pensamentos, mas também, especialmente numa área como o design, de inspirar o presente.
Por entre as muitas leituras históricas que se possa fazer do design gráfico em Portugal, uma delas assentará indubitavelmente, no percurso pessoal de muitos dos designers portugueses, porventura em épocas que nem este próprio nome era reconhecido como tal. Quando se fala desta história, dos seus autores e movimentos, ainda assim em descoberta, um dos nomes incontornáveis é o de Sebastião Rodrigues.
Um percurso que se entrelaça com a história do país
Sebastião Rodrigues viveu numa época de grandes mudanças políticas. Nascido no Dafundo, a 28 de Janeiro, um ano depois de Salazar chegar ao Conselho de Ministros como Ministro das Finanças em 1928, era filho de uma família de classe social média. Sebastião frequentou como muitos outros da época a escola primária, onde ingressou no ano de 1936. Aí encontraria também uma das figuras, que ele próprio refere como uma das mais marcantes da sua vida, a sua professora de instrução primária, a D. Clotilde. Fruto das dificuldades económicas que na época assolavam praticamente todo o país, Sebastião Rodrigues começa a trabalhar com 13 anos no escritório de uma empresa Sueca, a Electro-Lux, enquanto em simultâneo ajudava o seu pai no departamento de publicidade do jornal “A Voz”.
Ao mesmo tempo que terminava a II Guerra Mundial, de onde Portugal se conseguiu manter afastado, Sebastião Rodrigues é convidado a trabalhar na APA – Agência de Publicidade Artística, estávamos no ano de 1945. Foi também na APA que Sebastião encontrou, aquele que seria praticamente desde sempre o seu companheiro de trabalho, Manuel Rodrigues. A proximidade entre a dupla manteve-se durante mais de vinte anos, relação essa que só foi interrompida pela morte de Manuel Rodrigues já no ano de 1965.
A Secretaria Nacional de Informação
Facilmente se poderá cunhar Sebastião Rodrigues como um designer do regime. Regime com quem colaborou bastante, mais propriamente através da Secretaria Nacional de Informação, o SNI, a partir do ano de 1948. Para lá de grande parte do seu trabalho deste período refletir bastante os valores nacionalistas e patriotas defendidos pelo regime, facilmente se perceberá pelo conhecimento mais profundo da figura do designer, que era uma pessoa extremamente profissional, que não se envolvia em política, mantendo o seu foco enquanto designer na resolução dos problemas gráficos que lhe eram colocados. Esta colaboração próxima com a SNI foi também a oportunidade de Sebastião Rodrigues puder abraçar de corpo e alma aquele ofício que até então não passava de ocupação de tempos livres, o design gráfico.
O Almanaque
Quando falamos do percurso profissional de Sebastião Rodrigues, existem alguns projetos completamente incontornáveis. Sem sombra de dúvidas, um desses projetos é a revista “Almanaque” da qual Sebastião Rodrigues foi responsável pelo grafismo entre os anos de 1959 e 1960. O “Almanaque” era uma pequena revista mensal, que emanava uma aura, tanto de atrevida como de interventiva, que brincava com o seu leitor utilizando a subtileza tanto escrita como desenhada. A publicação esteve nas bancas durante 14 números.
A importância desta revista no trabalho global de Sebastião Rodrigues facilmente se poderia comparar proporcionalmente, à importância das figuras que nela estiveram envolvidas, figuras como: Figueiredo Magalhães, José Cardoso Pires, Vasco Pulido Valente, Sena da Silva, Pilo da Silva, Luís Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, Alexandre O’Neill, José Cutileiro, Eduardo Gageiro e João Abel Manta, este último, também ele uma grande figura da história do design gráfico em Portugal na segunda metade do século XX.
As viagens pelo norte de Portugal
Ao mesmo tempo que Sebastião Rodrigues se vê envolvido no projeto do “Almanaque”, torna-se bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, facto que o leva a viajar durante seis meses pelo norte de Portugal, realizando várias das suas pesquisas de material gráfico de cariz popular, que seriam determinantes na construção de toda a sua obra gráfica. Paralelamente a todo este período extremamente criativo para Sebastião Rodrigues, Portugal vê despontar nas suas colónias de África uma das suas guerras mais marcantes, a guerra do Ultramar, decorria o ano de 1961.
O reconhecimento internacional
Para lá do panorama nacional e de todas as exposições coletivas e individuais em que Sebastião Rodrigues vem participando até então, o ano de 1962 marca definitivamente o reconhecimento além fronteiras, deste que era já uma das maiores referências do design gráfico português. Sebastião Rodrigues vê neste ano o seu trabalho reconhecido e publicado no Who’s Who in Graphic Art e no Graphics Anual Internacional Year Book of Advertising Art.
A Fundação Calouste Gulbenkian
Sebastião Rodrigues, foi desde sempre um criador intimamente ligado à divulgação e propulsão cultural. Em 1963, inicia uma das colaborações neste meio que mais notoriedade lhe traria. Neste ano inicia a produção gráfica para a Fundação Calouste Gulbenkian, ficando a cargo do designer português toda a produção de catálogos, cartazes, desdobráveis, exposições, etc.
Existem clientes que marcam de forma categórica o percurso e carreira de Sebastião Rodrigues. Mas, o papel que o designer teve no desenho de muitos dos materiais de comunicação da fundação neste tempo, são pela sua complexidade e multiplicidade de aplicações, sem sombra de dúvidas, um dos mais importantes marcos da sua carreira.
A Associação Portuguesa de Designers
Praticamente dez anos depois, decorria o ano de 1974, Portugal numa manhã de Abril vê começar um dos dias mais longos da sua história. 25 de Abril de 1974 é a data em que Portugal se agita na sua Revolução dos Cravos. Abre-se aqui um novo capítulo da história de Portugal, tal e qual como em 1976 se abre um novo rumo no design português, com a criação da Associação Portuguesa de Designers, da qual Sebastião Rodrigues foi sócio fundador.
Terminava também neste ano, 1976, um período conturbado de transição da sociedade portuguesa pós 25 de Abril. É precisamente também neste ano, 1976, que é promulgada a nova Constituição Portuguesa, fruto de um processo eleitoral livre decorrido simbolicamente um ano antes, 25 de Abril de 1975. A Constituição promulgada em 1976 é a mesma que vigora ainda nos dias de hoje, tendo ao longo dos anos sofrido diversas retificações pontuais.
O Mosteiro da Batalha
O mesmo designer que tinha tido, anos antes um intenso trabalho para a SNI, Sebastião Rodrigues, cria em 1977 um dos ícones gráficos do 25 de Abril, um cartaz alusivo à data, como símbolo do patriotismo Português e onde o vermelho da paixão e o verde da esperança se entrelaçam dando lugar a um lettring esclarecedor. Se dúvidas existissem, esta é a demonstração mais explícita, que Sebastião Rodrigues nunca teve quaisquer ambições e superstições políticas e a única coisa que o movia era a enorme paixão que tinha pela sua profissão.
O final da década de setenta e toda a década de oitenta foi para Sebastião Rodrigues o inverso daquilo que seria para Portugal. Ao passo que Portugal, procurava recuperar do atraso e do isolamento que sofreu durante todo o regime anterior, ambicionando retomar o ritmo do desenvolvimento, Sebastião Rodrigues vê neste período um dos mais férteis da sua obra. Continua a desenvolver grande parte da comunicação gráfica da Fundação Calouste Gulbenkian, iniciando trabalho para um dos seus outros clientes de referência no âmbito do património, o Mosteiro da Batalha. Para além destes dois importantes clientes, que são na obra de Sebastião Rodrigues, dois marcos, o designer português desenvolve paralelamente um frenesim de outros projetos gráficos, que fazem da sua obra um espólio altamente completo e diversificado, seja como capista, paginador, expositor, etc.
O reconhecimento nacional
Antes de morrer em Junho de 1997, Sebastião Rodrigues teve ainda tempo de ver o seu trabalho reconhecido tanto pela comunidade de designers internacional, através da ICOGRADA (Internacional Council of Graphic Design Associations) que em 1991 lhe concede o Award of Excellence, como pela sociedade civil, através da atribuição em 1995 da Medalha de Grande Oficial da Ordem de Mérito, atribuída pelo Presidente Mário Soares no Dia de Portugal.
Sebastião Rodrigues morreu em 1997, com 68 anos, vítima de doença prolongada mas com uma obra gráfica imensa, distribuída por diversos períodos políticos, sociais e culturais da sociedade portuguesa do século XX. Deixou para trás um legado de inquestionável valor, na construção da identidade do design gráfico contemporâneo português, ao influenciar direta e indiretamente muitos dos designers das gerações seguintes.
Quatro ideias simples num trabalho todo ele plural
Sebastião Rodrigues exerceu quase toda a sua atividade profissional em Lisboa. Um português no mais amplo e simbólico sentido da palavra, Sebastião Rodrigues, tinha um fascínio muito especial por toda a cultura e folclore português. O designer nascido no Dafundo, foi um dos exemplos mais palpáveis de como um criador pode e deve ser influenciado, pelas suas origens etnográficas, arqueológicas e populares, sem nunca perder um sentido de modernidade e frescura gráfica, muito à frente do seu tempo.
Caracterizar a obra gráfica de Sebastião Rodrigues não é um exercício simples. Pelas suas multifacetadas valências e inspirações, pode ser um desafio tentar simplificar este legado num conjunto restrito de definições. Ainda assim, existem algumas premissas em toda a sua obra, completamente determinantes.
A inspiração portuguesa
Muito do trabalho de Sebastião Rodrigues foi desenvolvido durante o Estado Novo, mais concretamente tendo a SNI – Secretaria Nacional de Informação – como cliente. Naturalmente todas estas criações gráficas teriam que refletir os valores que tanto comandaram o Estado Novo, mas a essa visão, Sebastião Rodrigues soube sempre imprimir uma frescura contemporânea, inteligente e criativa da identidade popular do país de Camões.
Sebastião Rodrigues era uma pessoa extremamente bem informada de tudo aquilo que se passava internacionalmente. Embora Portugal vivesse mergulhado sobre si mesmo, o designer soube sempre quebrar essa barreira, mantendo-se a par da evolução do mundo. Pensar a obra de Sebastião Rodrigues, sem os seus símbolos e metáforas gráficas oriundos da cultura popular portuguesa é pensar em tudo, menos na obra daquele que é provavelmente uma das figuras mais importantes da história do design gráfico português.
Sebastião era alguém que procurava incessantemente investigar e perceber o mundo e cultura em que vivia. Quase se poderá dizer que Sebastião vivia com o atelier em Lisboa e o pensamento em Portugal, principalmente o chamado Portugal profundo, por onde, não poucas vezes, viajou à procura de inspirações e material gráfico que estaria mais tarde na base de muitas das suas criações.
O expoente máximo desta procura dá-se entre os anos de 1959 e 1960, quando durante seis meses viaja pelo norte de Portugal, enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, à procura e descoberta de influências e materiais gráficos ilustrativos de cariz popular e etnográfico.
O desenho da iIlustração
Pensar na obra de Sebastião Rodrigues, é automaticamente pensar nas formas de cores lisas e fortes dos trabalhos Verde Gaio. É pensar nas capas de desenho linear e directo da revista “Almanaque”. É pensar na geometria transformada em forma através de figuras simples das capas de muitos dos livros da Sá da Costa Editora, mas também em todos os personagens que povoaram os seus cartazes, folhetos e desdobráveis.
Sebastião Rodrigues, como qualquer outro criador, teve no seu trabalho diversos momentos. Começou a trabalhar ainda influenciado pelas ideias neo-realistas de Victor Palla, mas depressa foi caminhando na procura de uma linguagem muito própria. Desenvolveu a partir da década de cinquenta, muita da linguagem de ilustração que mais tarde, a partir da década de sessenta, chegaria a um estado de depuração e simplicidade quase absoluto.
Olhando para o cartaz “Visitez le Portugal” de 1953 e o cartaz de “Portugal Ikofa 1960” de 1960, percebe-se claramente dois momentos criativos no percurso do designer. Sem sombra de dúvidas que a linguagem do segundo cartaz é aquela que mais caracteriza o designer português. Uma linguagem que vive da geometria, transposta em formas simples e cores lisas, de uma comunicação absolutamente imediata mas ao mesmo tempo com bastante humor e rigor de execução.
O trabalho de pensamento de ilustração é sem dúvida o marco mais importante da criação deste designer gráfico, que ainda mais tarde, a partir de meados da década de setenta, evoluiria no sentido da incorporação e exploração da fotografia no seu trabalho, como demonstra muitas das criações para a Fundação Calouste Gulbenkian e Mosteiro da Batalha, já na década de oitenta.
A tipografia funcional
Também no campo tipográfico Sebastião Rodrigues foi sofrendo uma mutação ao longo dos tempos. Evoluiu de uma utilização da tipografia meramente funcional, como por exemplo é comum em muitas das suas primeiras capas de livros, para chegar a uma utilização da tipografia já como imagem, a exemplo do Catálogo Retrospectiva da obra de Eduardo Viana. Os seus títulos e trabalhos tipográficos em grande parte refletiam a sua visão funcional da comunicação, ou seja, a tipografia era utilizada sem grandes composições, mas sempre em jogo, ou como o próprio costumava dizer, em brincadeira, com todos os elementos da peça.
Em alguns casos poderemos encontrar mesmo uma fusão entre a imagem e a tipografia, como no cartaz da exposição “Pintura Portuguesa de Hoy” realizada em 1973 na Universidade de Salamanca ou então na composição gráfica em que Sebastião Rodrigues representa uma simpática conversa entre dois efes, atentamente observados por um anjo no topo de um labirinto icónico.
De uma utilização funcional meramente informativa, Sebastião Rodrigues, evolui ao longo do tempo, para uma utilização imagética no sentido que a letra e a palavra compunham manchas gráficas, fortalecendo e interagindo de alguma forma com a mensagem, sempre ela clara e imediata.
O domínio da tipografia e a sua exploração continuada fazem adivinhar também em grande parte, a sua percepção e conhecimento profundo das técnicas de reprodução da altura, onde o trabalho do designer era construído por entre fotocomposições e desenho manual de todos os elementos.
A técnica primorosa
Sebastião Rodrigues trabalhou por algum tempo com o seu pai no departamento de publicidade do jornal “A Voz”. Aí fazia pequenos trabalhos de composição de tipos de metal que mais tarde imprimiriam as várias edições do jornal. Não será certamente o método inventado por Gutenberg, mas fazendo todos os filtros temporais é de facto um método, na sua génese bastante similar.
Este conhecimento e domínio de grande parte das técnicas de reprodução, que na época faziam a transição entre o fotolito e o offset, deram a Sebastião Rodrigues um invulgar, mas determinante conhecimento, que mais tarde se traduziria em todo o rigor que se reconhece aos seus trabalhos. Para além do designer de atelier, Sebastião Rodrigues era também ele um designer de oficina, aquele que em conjunto com os mestres compunha, retocava e ajustava todas as peças até à exaustão e mais ínfimo detalhe. A sua formação incompleta de um curso profissional de serralharia mecânica, em muito contribuiu para a sua abordagem oficinal daquela, que viria a ser a sua profissão de corpo e alma, o design gráfico.
Para lá de todo o grafismo e exuberância visual que os trabalhos de Sebastião Rodrigues emanam, as suas criações são também, um levar ao limite todas as técnicas de impressão da época. A “manualidade” e proximidade com a oficina que todos estes processos implicavam e o fascínio que isto provocava em Sebastião, foi uma das principais causas que fizeram com que o designer nunca tomasse as novas possibilidades informáticas em conta nas suas criações, embora estas também tenham entrado em foco já numa fase em que o volume criativo de Sebastião tinha entrado em decréscimo.
Todo o “facilitismo” que a revolução Mac traria ao design gráfico, nunca seduziu este designer, que para além da criação desenhada sempre se fascinou pela criação reprodutiva, incutindo com isso um rigor quase matemático e cientifico a todos os seus trabalhos de comunicação.
Um designer feito pelo desenho
Em Sebastião Rodrigues tudo é desenho. Mais que o ato de tracejar qualquer forma, na obra gráfica deste designer português, tudo é desenho e processo mental. Desde a recolha e ideia até a finalização e impressão da peça. Tudo está, tudo deve estar, sobre o controlo do designer, que no verdadeiro sentido da palavra e do termo nenhuma vocação terá para mero decorador. Como o próprio Sebastião defendia: “a única coisa que importa é a função, tudo mais é brincadeira, mas sempre uma brincadeira com uma função”.
A obra de Sebastião Rodrigues atravessa toda uma série de mudanças sociais em Portugal. Ele soube como ninguém manter o seu trabalho livre na época da censura do Estado Novo. Soube como nenhum outro não subordinar o design gráfico a valores, que de humano teriam muito pouco. Foi desde sempre uma figura de um carácter e educação elevada que se traduzia num trato próximo com todos aqueles que com ele tinha o prazer de privar.
Em Sebastião Rodrigues tudo é desenho. A tipografia, a ilustração, a fotografia, tudo passa por um processo criativo que traduz e ao mesmo tempo se inspira, nas origens etnográficas e populares de Portugal. Sebastião, para lá da sua obra gráfica soube como ninguém “Desenhar Portugal” através dos seus cartazes, folhetos e exposições. Soube como ninguém respeitar a identidade de todos os povos que eram o mote de muitos dos seus trabalhos.
Tudo aquilo que representa Sebastião Rodrigues é muito mais que história do design gráfico português. É a solução encontrada por alguém que viu no seu tempo traços do futuro da sua profissão, o design gráfico que com o tempo se “transformaria” em design de comunicação. Em certa medida poder-se-á considerar Sebastião Rodrigues como um visionário, pois se não o fosse não seria hoje alvo de estudo, mas também de fascínio por todo o seu trabalho.
Fotografia © Tamanna Rumee (Unsplash)