Tecnologias com propósito

A arte um pouco como a tecnologia, sempre foi um espelho da sua época. Nela são refletidas por norma, ideologias mas também fundamentalismos, de um determinado espaço e tempo. Antes da explosão conceptual do inicio do século XX, os movimentos artísticos na Europa seguiam-se uns após os outros, numa sequência temporal mais ou menos linear. Um movimento nascia, quase sempre, fazendo um contra ponto com o movimento antecessor, tendo de forma incontestável uma íntima ligação com o contexto político, social, geográfico e religioso da sua época.

O aparecimento da Arte Barroca, por exemplo, é ele mesmo uma ilustração clara de tudo isto. Numa época em que a ideologia de Martinho Lutero e a sua Reforma Protestante, ganhavam cada vez mais adeptos, a igreja responde a este movimento, com a sua Reforma Católica também denominada de Contra-reforma. A religião marca aqui o nascimento de um novo estilo artístico, com reflexo essencialmente na arquitetura, pintura e escultura de então. A Arte Barroca, surge invariavelmente ligada a uma “revolução”, que procurava transformar a igreja num espaço teatral sagrado, onde eram representados os dramas de Deus.

Mas será justo questionar, como poderia simplesmente um homem desencadear tudo isto? Como poderia um monge alemão, fazer, ou pelo menos provocar, a reação da igreja às suas filosofias? Afinal de contas, de uma forma direta ou indireta não será absolutamente descabido, associar Martinho Lutero a toda esta corrente de transformação artística, mas não só.

Tecnologias em transformação

Lutero viveu numa época de grandes e profundas revoluções tecnológicas. Foi no seu tempo, no seu país, a Alemanha, que poucas décadas antes de defender que o povo deveria ler a bíblia por si próprio, foi inventado por Gutenberg, o mecanismo que permitiu não só tornar isso possível, como também ajudar decisivamente na disseminação das suas teses contra a venda de indulgências pela Igreja Católica.

Por muitos apelidada como a invenção do milénio, o sistema mecânico de tipos móveis de Gutenberg é fruto de vários séculos de evolução. De certo modo poder-se-á dizer que Gutenberg teve a genialidade de reunir num único meio, tecnologias que andavam dispersas.

A prensa tipográfica

A prensa tipográfica é uma invenção chinesa do ano de 600 d.C. Contudo, a sua aplicação para a língua escrita chinesa, nunca foi fácil. A língua escrita chinesa é composta por cerca de 20.000 ideogramas diferentes. Isto quer dizer, que a língua integra 20.000 sinais que não exprimem em si uma letra ou som, mas ilustram sim em cada símbolo, ideias e significados concretos.

Tendo isto em mente, não será difícil então perceber, porque motivo a prensa tipográfica chinesa, nunca obteve tanto sucesso como o sistema de Gutenberg. Seria completamente impraticável, imprimir textos baseados na língua escrita chinesa. O imenso número de caracteres móveis a que isso obrigaria, fez com que esta técnica, fosse na China apenas utilizada na impressão de mensagens de saudação e anúncios.

A linguagem escrita

A história da prensa chinesa, é em si também um excelente exemplo de como o contexto é determinante para o sucesso de qualquer tecnologia. O facto da linguagem escrita chinesa, não ser massivamente conciliável com esta tecnologia, fez com que a sua aplicação, tivesse ficado muito longe da que ocorreu mais tarde com o sistema de Gutenberg na Europa, com o impacto disso que todos nós reconhecemos na história da humanidade.

A linguagem escrita, foi por tanto, também um dos factores que contribuíram para o sucesso da invenção de Gutenberg. A escrita apoiada no alfabeto inventado pelo povo Fenício, que associa a uma letra, um som, sendo por sua vez através do somatório dessas letras que se consegue construir uma narrativa. A invenção Fenícia está também na base de muitos outros alfabetos como por exemplo o grego, o latim, o árabe ou o hebraico. No entanto é importante registar, que o alfabeto inventado pelos Fenícios, tem as suas primitivas origens no sistema silábico de escrita cuneiforme, inventado pelos Sumérios, povo mesopotâmico. É curioso também perceber que a origem da invenção Suméria, esteve ligada com a sua necessidade de registo das transacções comerciais do seu tempo.

A tinta e o papel

A necessidade de registar ideias mais simples ou complexas, mais concretas ou abstractas, sempre fez parte da história da humanidade. Desde os desenhos nas grutas de Lascaux aos mais modernos sistemas de digitalização, o homem sempre teve a necessidade de “eternizar” e partilhar através de algum tipo de suporte muitos dos seus pensamentos.

Os pigmentos de tinta e o papel, nas suas várias evoluções ao longo da história da humanidade, foram desde sempre uma ferramenta muito importante para esta necessidade de registo. Materiais utilizados durante séculos, principalmente através de processos manuais, que apesar da sua rudimentaridade, estiveram na base dos grandes centros de conhecimento da antiguidade como é exemplo a biblioteca de Alexandria. 

A fusão de tecnologias de Gutenberg

Johannes Gutenberg teve a genialidade de conciliar todas estas tecnologias num único meio, a imprensa. Mas, também no caso da invenção de Gutenberg é interessante perceber como o contexto influenciou de forma determinante a sua genialidade. Gutenberg era natural de Mainz, uma cidade alemã que fica no vale do rio Reno. Zona muito ligada à produção vitivinícola, é curioso perceber que foi à prensa de vinho que Gutenberg foi buscar o ponto de partida para a sua invenção, ao qual juntaria a tecnologia da prensa chinesa, a importância da linguagem escrita dos Fenícios e a utilização da tinta e do papel como suportes de registo.

A primeira publicação a ser impressa por Gutenberg foi precisamente a Bíblia. Impressa na cidade de Mainz em latim no decorrer do ano de 1455, esta primeira publicação ficaria conhecida como a Bíblia de Gutenberg.

Apelidada por David Riesman como a “pólvora da mente”, a invenção de Johannes Gutenberg protagoniza a liberalização do conhecimento através da escrita, escancarando portas para uma nova era do conhecimento.

Buchdrucker de Jost Amman © Wikipedia

Relação das tecnologias com o seu propósito

Numa conjugação de fatores incrível, a imprensa de Gutenberg seria pois a “arma” que Lutero precisava para difundir a sua doutrina. Protagonizando o objetivo de fazer com cada pessoa pudesse ler por si própria a bíblia, a impressa tornaria também possível a distribuição generalizada das famosas 95 teses de Lutero. À tecnologia inventada por Gutenberg, somou-se o contexto e o propósito de Lutero que em conjunto deram origem a uma das maiores transformações intelectuais da história da humanidade.

Para lá da Reforma Protestante e da Contra-reforma Católica, a imprensa foi aos poucos tornando-se no meio mais popular de disseminação da informação. A dada altura era já impossível contabilizar, quer fosse o número de prensas tipográficas quer fosse a quantidade de publicações que estavam a ser impressas na época.

É também relativamente simples imaginar, os tempos conturbados a que a Reforma Protestante e a edição generalizada da bíblia deram origem. Por várias razões, algumas não propositadas, a doutrina de Lutero está intimamente ligada à invenção de Gutenberg e por consequência associada também a toda a crítica da época a este novo meio de comunicação.

Se olharmos com atenção para a história da comunicação, veremos que de cada vez que a humanidade inventa um novo meio, encontra sempre resistência, foi assim com a imprensa, seria assim mais tarde com a rádio, a televisão e já nos tempos modernos com a internet.

O propósito primeiro que as tecnologias

A história da relação da doutrina de Lutero com a invenção da imprensa de Gutenberg, tem incalculáveis paralelismos com o contexto digital do século XXI. Por entre muitas das conclusões que se possam retirar, ela demonstra de forma muito particular a ligação íntima que a tecnologia deve ter, não só com o contexto de cada época, mas principalmente com um propósito claro.

O que seria da Reforma Protestante sem o papel preponderante da imprensa? Ou por outro lado, teria a imprensa ganho tamanha relevância se não tivesse ajudado na disseminação da doutrina de Lutero?

Olhar para a tecnologia, sem refletir sobre o seu propósito e os verdadeiros problemas que esta deve resolver, é em si um exercício de ficção-ciêntifica. Um exercício extremamente interessante, é certo, mas que dificilmente se traduz, pelo menos no imediato, na resolução dos desafios concretos do dia-a-dia das pessoas e por consequência, na melhoria da sua qualidade de vida.

Fotografia © Raphael Schaller (Unsplash)