Os design systems e a acessibilidade digital são dois tópicos incontornáveis no dia a dia de qualquer equipa de produtos e serviços digitais. Um ajuda a construir processos de trabalho mais eficientes e ágeis. O outro garante que o maior número de pessoas, independentemente das suas características, poderão utilizar esses mesmos produtos e serviços digitais.
Tanto um como outro tema dizem respeito a processos de trabalho muito estruturais e transversais naquilo que é a construção e manutenção de produtos e serviços digitais. É difícil compartimentar o papel dos design systems e da acessibilidade digital, em equipas especificas ou roadmaps fechados. Ambos os tópicos requerem a participação muito ampla de todas as equipas relacionadas com os produtos e serviços digitais nos quais os design systems e a acessibilidade digital devem ter impacto.
Relação entre design systems e acessibilidade digital
Quando falamos destes dois temas em conjunto é importante perceber antes de tudo a sua relação. Se os dois tópicos não podem ser compartimentados e fechados entre si, afinal de contas onde é que eles se tocam? Podem existir vários tipos de relações, é verdade. Mas uma das mais significativas, pode muito bem estar relacionada com o facto dos design systems poderem ser um extraordinário acelerador para a construção e manutenção de produtos e serviços digitais verdadeiramente acessíveis.
Vejamos da seguinte maneira. Se eu quiser construir uma “casa” acessível (o meu produto ou serviço digital) e os “módulos” com os quais vou construir essa “casa” já forem eles próprios (na medida do possível) acessíveis. Tenho pelo menos meio caminho andando para que no final a minha “casa” seja acessível. Certo? Acontece que quando quando falamos de design systems e acessibilidade digital em conjunto, ter um design system acessível (ou seja os módulos da minha “casa”) não faz com que o produto ou serviço digital seja acessível por si só. É claro que ter um design system onde são aplicadas e recomendadas todas as melhores práticas de acessibilidade digital será uma grande ajuda, mas isto por si só pode não garantir no final, um produto ou serviço digital acessível.
Nem tudo se resolve como por magia
Partindo deste princípio, é perfeitamente normal perguntar: “Mas que raio. Se os módulos com que vou construir a casa já são acessíveis, porque é que a casa pode não ser acessível?”. Afinal de contas isto até pode ser um contrassenso. Investir tanto tempo e dinheiro num design system com o intuito que todos os produtos e serviços digitais da empresa sejam acessíveis e depois no final isso pode não acontecer.
É importante fazer as perguntas certas e não ter medo das respostas. Existem alguns conceitos que podem ajudar a explicar porque é que um design system acessível pode não ser o suficiente para a construção e manutenção de produtos e serviços acessíveis. Aqui ficam alguns conceitos que podem abrir horizontes para esta resposta.
1. Estrutura e conteúdo antes de tudo
O princípio da acessibilidade digital, não está na forma, mas na função. Isto é uma gíria recorrente na disciplina do design, mas que serve lindamente para fazer alusão aquilo que pode ser o ponto de partida para o trabalho da acessibilidade digital. Boa parte daquilo que são os maiores desafios da acessibilidade digital resolvem-se no conteúdo e na sua estruturação.
Como conseguimos construir um produto acessível mas que tem imensos níveis de navegação? Será que o nosso produto será acessível se muita da principal informação estiver confinada em PDFs impossíveis de ler por leitores de ecrã? O conteúdo até pode estar bem codificado, mas como pode ele ser acessível se estiver numa linguagem altamente técnica e imperceptível para os utilizadores? Como criamos um produto acessível se não existir uma hierarquia clara entre os vários conteúdos e funcionalidades? Tudo isto são preocupações fundamentais quando falamos de acessibilidade digital e que vão muito para além daquelas que possam ser as peças dos design systems que estamos a utilizar no momento.
2. Design systems têm tudo que ver com partes isoladas
Existem muitas analogias que se podem fazer quando a conversa são design systems. Os legos serão por ventura uma das mais recorrentes. Não só porque o brinquedo dinamarquês fascinou muitos de nós em crianças (e ainda fascina em adultos), mas porque a analogia das peças que ajudam a construir coisas grandiosas, faz mesmo muito sentido quando falamos destes tipos de sistemas relacionados com a transformação digital das empresas.
A analogia dos legos com os design systems, deixa igualmente muito evidente um conceito absolutamente basilar. Quando falamos de design systems, sejam eles mais ou menos completos, mais práticos ou estratégicos, estamos sempre a falar de peças. Peças que se podem relacionar, mas a perspectiva está sempre nas peças e não na construção como um tudo (ou melhor dizendo, no produto e serviço digital), que é na prática aquilo que os utilizadores vão manusear.
3. Acessibilidade tem tudo que ver com as partes em contexto
Independentemente das peças que possamos estar a utilizar em cada momento e partindo do pressuposto que essas peças são acessíveis na medida do possível, a acessibilidade digital não é um conceito em abstracto. Aquilo que são as boas práticas e recomendações de acessibilidade digital procuram fazer com que conteúdos e funcionalidades concretas possam ser utilizadas pelo maior número de pessoas.
Por outras palavras, só no contexto do contexto concreto do conteúdo ou funcionalidade que pretendemos tornar acessível é que conseguimos fazer com isso seja realmente acessível. Naquele momento específico da experiência que instrução é que temos que dar no formulário? Naquele conteúdo o que podemos fazer para que a sua estrutura e navegação seja a mais clara possível? Naquela página em concreto como serão utilizadas em conjunto os componentes de conteúdos que preciso para que o meu utilizador encontre da forma mais rápida aquilo que procura? E garantindo tudo isto, como será aquela funcionalidade em que estamos a trabalhar utilizada por pessoas que tenham modelos de interação diferentes, seja por teclado, leitores de ecrã, os dois em conjunto ou qualquer outro? É sobre todos estes contextos que é também e principalmente a acessibilidade digital.
4. Design systems não limitam opções
Um dos mitos mais recorrentes em torno dos design systems é que estes em certa altura podem ser bastante limitadores quer da inovação quer mesmo da “criatividade”. Acontece que isto é um engano. Os design systems não limitam nem uma coisa nem outra. Muito pelo contrário. Ao otimizar toda a parte do “trabalho” que pode ser otimizada, vão deixar ainda mais espaço para que a inovação e a criatividade possam acontecer ainda em maior escala.
Existe aqui uma ideia que importa destruir. Os design systems nunca serão a fonte de toda a verdade. É impossível construir um design system que responda a todas as atuais e futuras necessidades de um produto e serviço digital, simplesmente porque o digital e as necessidades das pessoas evoluem todos os dias. Quer isto dizer, que por muito bem feito que esteja a acessibilidade digital nas peças dos design systems, existirá sempre espaço (e ainda bem) para “fugir” ao design system, porque pura e simplesmente ele nunca cobrirá (na grande maioria dos contextos) todas as necessidades.
5. Design systems são ferramentas para outros utilizarem
Uma das coisas mais incríveis dos design systems é a sua escalabilidade. Quer isto dizer, que o essencial do trabalho do sistema não está em construir produtos e serviços digitais propriamente dito, mas em dar boas ferramentas para que outras equipas o possam fazer da melhor forma. Por muito que as equipas de design systems muitas vezes o queiram fazer, o seu papel não está em “meter as mãos na massa” das funcionalidades, mas passa sim por ajudar indirectamente as equipas que têm realmente a missão de o fazer.
Acontece que isto para acessibilidade digital e para a sua aplicação no contexto do dia a dia é também um desafio. Mesmo que as peças do sistema estejam extraordinariamente bem feitas, essas peças serão sempre aplicadas pelas equipas de produto no seu trabalho. Se as equipas de produto não tiverem elas também um foco muito claro na acessibilidade digital, vão acabar por fazer uma utilização parca ou muito simplista do bom trabalho de acessibilidade digital que vem embutido nas peças do design system. No final do dia, podemos dar uma grande ferramenta às equipas de produto, mas se elas não tiverem noção de tudo aquilo que podem fazer com ela, ficará sempre aquém das possibilidades.
Boa notícia disto tudo
Existem um lado muito positivo no meio de tudo isto. Se olharmos para os design systems, não tão só como um conjunto de componentes para fazer “coisas” (ou “casas” vá), mas principalmente como um mindset (ou um processo para construir essas “casas”) podemos ter no sistema respostas para muitos desafios. Mais que utilizar os design systems para disponibilizarmos peças às equipas de produto, podemos utilizar os design systems para ajudar as equipas de produto a construirem e manterem melhores produtos.
Podemos fazer isto, não só disponibilizando bons componentes, claro. Mas, principalmente trazendo para o “design system” todo o tipo de lógicas, recomendações, ferramentas de trabalho, metodologias processuais, guidelines que criem um verdadeiro empowerment nas equipas de produto. Pelo caminho, os design systems das organizações, podem e devem também eles próprios aprenderem com todo o conhecimento que as equipas de produto têm do dia a dia do negócio. Isto vai facilitar em muito que o sistema possa ir cada vez mais ao encontro das necessidades das equipas de produto o que neste caso quer dizer, ajudar a construir produtos e serviços digitais, cada vez mais acessíveis.
Fotografia © Debby Hudson (Unsplash)