Falar da maturidade ou experiência de um designer e a sua repercussão disso na indústria é um tema muito melindroso. Melindroso porque isto é um tópico que nos toca a todos nós e de uma forma ou de outra podemo-nos ver refletidos nesta situação. Mas, antes de avançar mais no texto é importante clarificar alguns pontos. Este texto é um artigo de opinião. Deve ser encarado como isso e com a credibilidade que ele merece. Não é, nem de perto nem de longe uma visão crítica da indústria, mas sim, uma reflexão que me parece importante e que deveríamos fazer em comunidade.
Para o bem e para o mal, acredito muito no bom senso e entrajuda da comunidade. Por mais que uma vez, a comunidade de design já demonstrou a sua maturidade para refletir sobre si própria e falar dos desafios sem melindros. Seja como for e no final do dia, é importante não esquecer, este texto é só uma opinião pessoal, baseada numa reflexão com algum tempo. Vale o que vale, ou seja, quase nada. É bom discordarmos e podemos respeitar sempre outras pessoas, mesmo que discordemos delas em quase tudo.
Olho no mercado
Feito o ponto prévio, vamos a isto. Avaliar currículos é uma tarefa que faço com alguma regularidade, por várias razões. A principal de todas, porque de forma bastante regular me pedem recomendações de UX, UI ou Product Designers para equipas nacionais e internacionais. É uma tarefa que faço com muito gosto, embora não com o tempo que gostaria. Dá-me muita satisfação conseguir fazer com que colegas possam encontrar novos desafios e que várias equipas de design saiam reforçadas com novas contratações. Acredito que é um trabalho, como quase tudo em design, que tem que ser feito com algum rigor e método, para garantir um processo, mesmo que seja de recomendações pessoais, relativamente confiável.
No meio deste processo, fui me deparando com mais que uma vez com uma tendência que despoletou esta reflexão. Não raras vezes (não mesmo raras vezes), encontro perfis de profissionais, que se assumem como Senior UX/UI Designer ou Senior Product Designer. Até aqui tudo bem. O que me preocupa é aquilo que vem a seguir. Quando vou analisar em detalhe muitos desses perfis, reparo que estes designers seniores têm em UX, UI ou Product Design, muitas vezes (mesmo muitas vezes), não mais que 2, 3 ou 4 anos de experiência. Existe uma parte desta conversa que diz respeito exclusivamente a cada um de nós. Cada um sabe de si e por mim está tudo bem. Contudo, este efeito de “seniores acelerados”, tem um efeito nefasto em toda a indústria. Perdemos uma total cartografia de maturidade. Se ao final de 2, 3 ou 4 anos, assumimos o título de seniores, como é que o mercado vai diferenciar estes profissionais dos outros profissionais que têm, por exemplo 10, 15, 20 ou até mais anos de experiência?
Sobre anos de experiência
Antes da reflexão avançar mais, é bom esclarecer este tópico, correndo até o risco de me contradizer com algumas coisas que possa dizer a seguir. Está tudo bem. Este não é um artigo cientifico, é só um artigo de opinião e reflexão. Mas, numa opinião muito pessoal, acredito que o número de anos de experiência por si só, vale quase nada. Tenho 15 anos de experiência no mercado. E daí? Este facto por si só, na minha sincera opinião vale muito pouco, por diz quase nada da real experiência de cada designer.
Tenho 15 anos de experiência, mas fiz sempre a mesma coisa, com as ferramentas mais arcaicas que existia, exactamente com os mesmos processos e sem nunca procurar nenhum tipo de formação complementar. Pessoalmente acho que é importante ter cuidado com argumentos de autoridade e experiência, baseados simplesmente no número de anos de experiência. Parece-me que seria importante, olhar para o número em si claro, mas ter em atenção principalmente o substrato desses anos de experiência.
O real problema
Voltando à reflexão principal, o problema de termos “seniores acelerados”, pelo menos quanto a mim, é que isso destrói qualquer escala possível e imaginável de real maturidade. A acrescentar a isso, esta aceleração também destrói o valor do design e dos designers na indústria. Apresentar um sénior com 2, 3 ou 4 anos de experiência, até dá a ideia que chegar a este nível de maturidade é coisa que se faz em pouco tempo. Bem sei que vivemos tempos acelerados, especialmente em digital. Bem sei que muitas vezes são as próprias empresas que aceleram a evolução dos seus profissionais, por várias razões e algumas até comerciais. Mas sejamos claros, 2, 3 ou 4 anos, é efetivamente pouco tempo. Especialmente se olharmos com uma visão de longo prazo de carreiras que vão ter 20 ou 30 anos. Chegar a sénior ao final de pouco anos, primeiro não reflete o verdadeiro seguramente o grau de maturidade da palavra “sénior” e segundo, deixa muito pouco espaço para a progressão que todos nós temos pela frente, numa carreira de décadas.
Eu sou daqueles que acredita que as palavras têm poder. As palavras têm significado. Dizer “A” não é igual a dizer “B”. Cada palavra tem o poder que tem e a palavra “sénior” tem bastante. Ao assumir como Senior UX/UI Designer ou Senior Product Designer, estou a reclamar para mim próprio um bastião de senioridade que ao final de 2, 3 ou 4 anos, muito provavelmente não tenho. Por outro lado, também estou a dizer ao mercado e a quem não compreende tão bem as especificidades da disciplina de design, que um designer sénior tem “este perfil”. Em termos de credibilidade isto também tem desafios imensos. Corremos o risco de padronizar uma escala de avaliação de maturidade nos profissionais, que não está correcta.
Medir a experiência
Este texto não tem nenhuma ambição de ser resposta para grande coisa. É só um exercício de pensamento livre sobre um tópico que pode ou não ter alguma relevância para a credibilidade da indústria de UX, UI e Product Design. Contudo, também gostava que ele pudesse lançar pistas para reflexões futuras, especialmente sobre como poderemos medir, ou não, a experiência de um profissional.
Não é uma ciência exacta, é importante termos consciência disto. Quando estamos a falar de pessoas as especificidades são infinitas. Podemos tentar muitas vezes organizar as pessoas em “caixinhas”, mas as pessoas têm uma riqueza infinita. Cada um de nós é diferente. Isto é extraordinário. No que toca a medição da maturidade profissional, isto levanta muitos desafios, mas de certo que não é impossível, encontrar métodos para criar algum tipo de referência. Aqui ficam algumas sugestões de vetores que podem ajudar a “medir” a experiência e maturidade de um designer. São estes vectores que de alguma forma dão força a ideia (e a este texto), que em 2, 3 ou 4 anos, é quase impossível chegar a um nível de desenvolvimento sénior, em muitos ou em quase todos eles.
1. Anos de experiência
Não é o único fator que deve ser tido em conta, mas claro que é um fator importante. Isso ninguém nega. Especialmente porque atrás dos anos de experiência e do trabalho continuado com diferentes pessoas e equipas, vêem uma série de outras competências, as chamadas soft skills, que são fundamentais para qualquer profissional.
É preciso olhar com cuidado para este vector. Mas os anos de experiência, são também um bom indicador, especialmente em digital, dos períodos de transformação da área que esse profissional já vivenciou. A memória e o conhecimento histórico de uma área, não é um conhecimento que se possa descartar e os anos de experiência trazem isso também.
2. Diversidade de projetos
O design, seja qual for a sua vertente, é uma disciplina profundamente multidisciplinar. Seja pela diversidade de desafios a que pode dar resposta, a amplitude de produtos e serviços que pode ajudar a construir, o envolvimento de profissionais de diferentes disciplinas ou ainda, as milhares de abordagens metodológicas que um projeto pode ter até chegar uma solução estável.
Tudo isto contribui bastante para a “experiência” de um profissional. Não em anos de experiência, mas sim, para a sua versatilidade. Acredito que o design não é uma linha de montagem. É sim uma ferramenta que se pode adaptar a muitos contextos diferentes. Tendo isto em mente, quanto maior for a diversidade de projetos no currículo, maior será a versatilidade, principalmente de pensamento, de um designer e isso é uma competência fundamental para a resolução de problemas desconhecidos.
3. Profundidade nas abordagens
Para lá da diversidade, a profundidade é também um vector que pode ser essencial ter em conta. Se o design é uma disciplina que procura responder a desafios específicos em contextos específicos, quer isto dizer que também deve ser uma disciplina que evita a utilização de soluções pré-definidas. Fórmulas prontas a utilizar, quase como uma loja de pronto-a-vestir.
Isto só se faz com um trabalho continuado em profundidade. Um nível quase obsessivo de conhecimento do problema real que procuramos resolver e um processo de tentativa erro até encontrarmos o compromisso mais interessante entre todos os constrangimentos do projeto. Para isto é preciso tempo e uma profundidade de pensamento muito substancial. Um conhecimento que vai transformando por completo o valor acrescentado que o designer pode trazer a cada projeto e por consequência a cada negócio.
4. Cultura de design
Este é um artigo de opinião, por isso não estou comprometido com muita coisa e este pode ser um tópico meio polémico. Para mim a diferença entre um designer a sério e todos os outros profissionais que atuam na área do design, é a cultura. Cultura numa visão mais abrangente da sociedade em geral, mas também cultura de design. Conhecimento da realidade e da indústria de hoje e da história de como aqui chegámos. História, essa coisa chata e muito maltratada.
Sem um conhecimento histórico de como aqui chegámos, não somos mais de replicadores de modas, sejam elas quais forem, sejam em que áreas for. Quem são as empresas e profissionais do nosso mercado hoje? O que estão a fazer? Quais as suas inovações? Quais são as nossas referências históricas? Qual é a história de determinados produtos que marcaram a evolução tecnológica? E tudo aquilo que nos ajude a perceber o contexto mais amplo daquilo que estamos a fazer hoje, é uma das características mais importantes de um profissional, especialmente alguém dito sénior.
5. Sentido e pensamento crítico
Pela importância da cultura de um profissional seria mais ou menos lógico perceber que chegaríamos também a este tópico: sentido e pensamento crítico. O design é uma ação de revolução. Revolução não no sentido das armas (felizmente), mas porque expressa uma inquietude com tudo aquilo que nos rodeia.
O “design” acredita que mesmo aquelas “coisas” que sempre foram feitas de determinada forma, podem ser feitas de forma melhor. Mais eficiente, otimizada, sustentável, democrática, acessível e por aí em diante. Uma capacidade quase infinita de através de processos iterativos, ajudar as pessoas a resolverem problemas concretos do seu dia a dia. O sentido e pensamento crítico é uma peça fundamental para que isso aconteça. Uma visão de descontentamento com os caminhos fáceis. Com as respostas de “é assim”, “porque sim”, “porque alguém disse que era assim” e “não temos tempo ou orçamento para mais”. O nosso objetivo é resolver os problemas certos, por isso temos que fazer todas as perguntas possíveis e imagináveis até os encontrarmos.
6. Envolvimento com a comunidade
Para além de ser um trabalho profundamente multidisciplinar, acredito que o design é também um trabalho extraordinariamente comunitário. Assumo que este possa não ser um ponto muito consensual. Mas esta ideia tem ligações com quase todos os outros tópicos. A comunidade de design é uma fonte inesgotável de conhecimento.
Com os meus pares, posso aprender e colocar à prova a minha visão das coisas. Posso conhecer os seus erros e fazer, quem sabe, com que não cometa os mesmos. Posso partilhar ideias e receber de volta visões contraditórias. E tudo isso é um enriquecimento pessoal e profissional difícil de igualar. Acredito profundamente que um designer, especialmente num nível de maturidade de sénior, não se faz sem isso. Alguém que não consegue, ou ainda não teve o tempo (o que é perfeitamente natural) de tirar a cabeça do seu ecrã e ir à procura da comunidade, é para mim (e por isso vale o que vale), um profissional incompleto. Um profissional que lhe falta “mundo”.
7. Formação contínua
Por fim, mas não menos importante, a formação contínua. Quem tem alguma memória das transformações que a indústria do design (e não só) foi sofrendo ao longo dos anos, lembrar-se-á o número de vezes que já se precisou de transformar enquanto profissional. Seja através de autodidatismo ou da formação formal ou informal, muitos de nós já tiveram que transformar as suas carreiras vezes e vezes sem conta.
Quem começou no design gráfico e migrou para o digital. Quem sempre utilizou determinadas ferramentas que hoje já nem existem (quem se lembra do Quarck ou do Macromedia Flash?). Quem foi mudando de nome ao longo do tempo (há por aí algum webdesigner?). O design é mesmo assim. Uma disciplina em mutação profunda e constante. É difícil se não mesmo impossível, conseguirmos adaptar a estas transformações sem uma formação contínua. Sem nos colocarmos constantemente numa posição de humildade de voltar a aprender, muito provavelmente contrariando conceitos que sempre tivemos como dado adquirido.
Reflexão em aberto
A humildade é um bem precioso. É importante não nos levarmos muito a sério. Neste caso, a humildade serve também para dizer claramente que toda esta reflexão está em aberto e pode (e deve) ser criticada. É bom discordarmos. Mais ainda se isso contribuir para uma reflexão verdadeira em comunidade sobre muitas das problemáticas que moldam a nossa indústria.
No final do dia, cada um de nós decidirá aquilo que é melhor para si. E está tudo bem. Claro que é bom refletir em comunidade, mas a individualidade e liberdade de cada um, dá-nos o direito de sermos donos do nosso destino. Contudo é também relevante nunca esquecer que nós não somos ilhas. Vivemos (e trabalhamos) num contexto mais amplo. Numa indústria que se constrói de diferentes agentes, em que somos influenciados, mas também influenciamos.
Fotografia © Patrick Hendry (Unsplash)
Ilustrações adaptadas © Julia G. (Icon 8 Ouch!)