É muito importante começar este texto com uma declaração de interesses fundamental: o Figma é uma ferramenta incrível. Revolucionou por completo a indústria do design e transformou definitivamente a forma como desenhamos interfaces e construímos experiências digitais. É mesmo importante que antes de continuares a ler os parágrafos seguintes retenhas esta idea, porque ela é para mim absolutamente verdade. Nada do que vais ler a seguir é sobre o Figma. É sim, sobre a forma como nós designers temos olhado para a ferramenta, confundindo muitas vezes a profissão com a utilização de um determinado software.
O design ao longo da sua história, especialmente nas suas vertentes de design gráfico e design digital, quase sempre confundiu a profissão com as ferramentas que utilizava para a exercer. Formou-se uma ideia na comunidade (e também nos clientes) que só és designer se utilizares esta ou aquela ferramenta. Na prática as que o mercado vai ditando como moda em cada momento. Para que fique bem claro, logicamente tens que utilizar as ferramentas mais eficientes para cada tarefa. Desenhar, nos dias de hoje, interfaces em Photoshop, por exemplo, não faz muito sentido. Não por ser o Photoshop em concreto (que também é uma ferramenta incrível), mas porque não é a ferramenta mais eficiente para o fazer. Não quer dizer que não seja possível, mas está muito longe de ser a mais eficiente. E o design também é isso, eficiência nos processos de trabalho.
Contudo, saberes os atalhos de teclado todos de um software, não faz de ti designer, pelo menos na minha opinião. É claro uma opinião que vale o que vale que é, ou seja, nada (podes e deves pensar aquilo que bem entenderes que ninguém tem nada que ver com isso). O que faz de ti designer, é a forma como pegas nessa ferramenta, seja o Photoshop, o Figma ou uma qualquer outra e resolves problemas reais de pessoas reais, criando pelo caminho modelos de negócio sustentáveis e inclusivos. É isto, na minha opinião, que vai tornar cada um de nós um designer ou não.
Um pouco de história
É preciso ter memória. Se a tua proposta de valor enquanto designer, for saber utilizar um determinado software, muito provavelmente vais ficar sem trabalho algures no tempo. É uma forma meio arcaica de começar uma frase, mas “eu ainda sou do tempo…” que desenhávamos interfaces em Photoshop. Alguns de nós desenhavam também em Fireworks (quem ainda se lembra da Macromedia?).
Depois a Adobe começou a ser muito teimosa e a insistir no Photoshop como a melhor solução para desenhar interfaces e não acompanhou as evoluções que o Sketch trouxe. Ou melhor, tentou acompanhar com o Adobe XD, mas correu tão bem que entretanto depois de lançar no início a ferramenta de forma completamente gratuita, percebeu que o melhor seria descontinuar o programa. Depois tentou comprar o Figma e também não correu bem. Resumindo e concluindo, a Adobe foi teimosa e não quis nem ouvir a comunidade, nem acompanhar a evolução que estava acontecer nos modelos de trabalho de design de interfaces e até hoje não se refez do trambolhão.
Esta história toda para dizer uma coisa simples. As ferramentas que utilizamos hoje não serão seguramente as que vamos utilizar no futuro. Photoshop, Sketch, Figma, são instrumentos que terão o seu tempo mas depois muito provavelmente serão substituídos por outras. Logo, as mais-valias que podemos aportar enquanto designers a um projeto não pode ser só puxar pixeis em programas de desenho, tem que ser muito mais que isso.
Saber pensar e saber fazer
Faz o seguinte exercício. Abre o Linkedin, pesquisa por UX, UI ou Product Designers e vê quantos têm nos seus perfis a referência a “Especialista em Figma” ou outra característica similar. No trabalho que vou fazendo como consultor em processos de recrutamento, naturalmente na área de design, tenho notado um padrão. Este tipo de referências específicas a softwares, não são tão invulgares quanto isso. Não se trata de dizer que domina esta ou aquela ferramenta. Isto é perfeitamente natural. Trata-se sim, de colocar esse domínio à frente, na apresentação pessoal, de quase tudo o resto daquilo que são as competências centrais de um designer. Isto reduz o designer a um tecnicismo que é importante, claro, mas que não espelha, nem de perto nem de longe, as competências essenciais da disciplina do design e o valor que este pode trazer aos negócios.
Estes são os perfis dos Figsigners. Profissionais que se assumem antes de tudo como especialistas numa ferramenta especifica, o Figma. Que trabalham provavelmente numa agência, consultora ou equipa de produto, mas que o melhor que têm para descrever o seu valor é o facto de dominarem o Figma. O problema é que até é um perfil com bastante procura. Quantas vezes vemos anúncios de recrutamento que mais não são que um catálogo alargado de ferramentas? O que também não faz muito sentido nem ajuda na valorização da disciplina do design nas empresas.
Sintomas de um Figsigner
Os sintomas de um Figsigner, manifestam-se de muitas maneiras diferentes. São vários os sinais a que devemos estar atentos e que podem ser um indício de alerta. Não é uma doença grave, mas é uma maleita que pode causar vários problemas ao reconhecimento do valor da disciplina de design. É muito importante fazer um diagnóstico atempado, para se conseguir intervir a tempo de toda a equipa de design numa empresa estar resumida ao perfil de “puxadores de pixeis em Figma”.
Para facilitar o diagnóstico, aqui fica uma lista de alguns sintomas de que podes já ter te tornado um Figsigner sem teres dado conta. Ainda vais a tempo de procurar a cura, ou seja, utilizar o Figma de forma incrível, mas para gerar um impacto real (e valioso) nos produtos e serviços digitais que todos os dias ajudas a construir.
- A conferência mais interessante que viste online no último ano foi a Config.
- Um dia sonhas ir a São Francisco participar presencialmente na Config (e até estás a fazer mealheiro para que isso aconteça).
- Quase todos os cursos que fizeste nos últimos 6 meses tinham uma componente “prática” de Figma muito relevante.
- A primeira coisa que fazes quando recebes um briefing (ou uma tarefa no Jira) é abrir o Figma para desenhar coisas avulso.
- Os videos que mais te são sugeridos no Youtube são tutoriais de Figma.
- Tens a certeza absoluta que vais utilizar para sempre o Figma no teu trabalho de UX, UI ou Product Design.
- Confundes design tokens com “variables” e achas que são a mesma coisa (ou as “variables” são muito melhores).
- Um design system só existe para ti se estiver extraordinariamente bem organizado em ficheiros de Figma.
- Acreditas que toda e qualquer documentação do projeto tem que estar dentro de ficheiros Figma.
- Passas horas na comunidade do Figma à procura de ficheiros de UI que muito provavelmente nunca vais usar.
- Uma das primeiras coisas com as quais te preocupas num novo projeto é saber “onde estão os ficheiros editáveis de Figma” (mesmo que a seguir aches que não estão bem organizados e os refaças todos).
- Tens uma profunda certeza que a forma como organizas ficheiros é a mais correcta e todos os colegas deveriam fazer assim também.
- Um projeto tem realmente êxito só se os ficheiros estiverem completamente arrumados.
- Tem que existir uma cópia exacta em ficheiros Figma de tudo aquilo que está em pré-produção ou produção.
- Achas que os outros colegas de equipa não vão perceber a tua estrutura de organização do ficheiro Figma e antes de lhes dares acesso é importante reunir para “dar contexto”.
- No feed do Instagram estão te sempre aparecer promoções a kits de UI (logicamente em Figma) ou imagens incríveis de projetos de UI.
- Achas que testes com utilizador têm sempre que ser feitos com base em protótipos de Figma.
- Os emails que lês mais rápido são as newsletters do Figma a anunciar as novas funcionalidades.
- Anseias com grande vontade que esteja disponível a nova versão de UI do Figma (mesmo que a seguir já saibas que vais dizer que ficou tudo fora do sitio).
- A acessibilidade para ti resume-se à utilização do plugin Stark (ou outro parecido).
- No teu CV ou perfil de Linkedin tens referências como “Especialista de Figma” ou gráficos de barras a quantificar o conhecimento na ferramenta.
- Tens em casa (ou contigo neste momento) algum tipo de merchandising do Figma ou um autocolante no teu computador.
- Participas num webinar sobre design systems e as tuas perguntas são principalmente relacionadas com a organização dos ficheiros em Figma.
- Acreditas que existe sempre um plugin para fazer aquelas tarefas chatas e repetitivas que não queres fazer.
- Ao veres as novas ferramentas de AI do Figma pensas que tens mais uma “ferramenta” à tua disposição (mesmo que possas ficar sem trabalho por causa disso daqui a algum tempo).
Vamos fazer um teste?
Não precisas de nenhuma zaragatoa para fazer este teste (felizmente). Ele é bastante simples mas ainda assim pode ajudar-te a perceber qual é a percentagem de ti que já é um Figsigner. O teste é o seguinte. Percorre os pontos da lista anterior. Sempre que ao ver um ponto e que digas para ti próprio “eu faço isto”, regista. No final soma todos os pontos da lista que já fazes e vais chegar a um número. Pega nesse número e enquadra-o nesta escala:
- Se te revês entre 1 e 5 pontos, és um Designer que utiliza simplesmente o Figma para trabalhar (o que é ótimo).
- Se te revês entre 6 e 10 pontos, já és um Aspirante a Figsigner.
- Se te revês entre 11 e 15 pontos, cuidado, és um Figsigner em construção a um ritmo bastante acelerado.
- Se te revês entre 16 e 20 pontos, já és um Figsigner no verdadeiro sentido do termo.
- Se te revês entre 21 e 25 pontos, não há nada a fazer, já és um Mestre Figsigner completo.
Conforme o número de pontos, percebes agora mais facilmente o quanto já és, ou não, um Figsigner. Mas nada temas. Não tem problema nenhum ser mais ou menos um Figsigner. Na verdade isso só te diz respeito a ti. Por isso, não está indicada nenhuma cura para estes sintomas e não é necessária prescrição médica para qualquer tipo de medicamento.
O que realmente interessa
A parte que interessa de tudo isto é que o design é mais que saber mexer num software. Nós, designers, passamos enquanto comunidade a vida a dizer isto a nós próprios. É isto que dizemos também aos clientes, “o design é importante para o negócio”. Não faz por tanto muito sentido, que nos confinemos só a utilização de uma ferramenta, seja ela qual for. Podemos e devemos ajudar a resolver problemas relevantes através do pensamento de design.
Através da criação de processos de trabalho que coloquem as pessoas no centro dos negócios. Através da colaboração com diferentes disciplinas técnicas na construção de produtos e serviços realmente sustentáveis e inclusivos. É este o papel do design e dos designers. Tem sido este ao longo do tempo e cada vez mais somos chamados a colaborar na resolução de verdadeiros desafios, quer seja dos negócios, quer seja do mundo em que vivemos.
Fotografia © Anna Kolosyuk (Unsplash)