O tema da acessibilidade digital é propício a que levante inúmeras questões às empresas e equipas de projeto. É por definição um tema técnica. Logo, isto quer dizer que para o analisar de forma estruturada é necessário algum conhecimento técnico, o que nem sempre é comum encontrar nas equipas de transformação digital. Por outro lado é também um tema que tem em seu redor vários estereótipos. Nada disto ajuda. É importante olhar para o tópico da acessibilidade digital, especialmente numa fase em que começa a ser cada vez mais comum de forma descomplexada.
O pior que pode acontecer, também quando falamos sobre acessibilidade digital, é partir para esta conversa tendo por base já uma série de mal entendidos ou medos acrescidos. É um tema complicado. Vais nos custar muito dinheiro. As pessoas com deficiência não utilizam o digital. São algumas das coisas que ouvimos em muitas reuniões e que não contribuem em nada para uma conversa saudável e prática sobre como trazer o trabalho de acessibilidade digital para o centro dos processos de trabalho das empresas.
A mudança da legislação na Europa sobre acessibilidade digital, pode ser um belo pretexto para começar esta conversa na empresa. Mais um vez, é importante ter cuidado para não gerar “medos” acrescidos sobre o tema. Mas, se não for de outra maneira, a mudança legislativa e a preocupação que isso pode gerar sobre o tema, pode ser a oportunidade que precisamos para evangelizar a organização para a importância de pensarmos, desenharmos e desenvolvermos, produtos e serviços digitais realmente acessíveis.
É natural que ao começar a conversa surjam muitas dúvidas às equipas. Ainda bem que isso acontece. É no mínimo sinal de interesse. É importante saber responder de forma simples, contextualizada e prática a cada uma dessas questões. Isso vai gerar confiança sobre o tema e ajudar às equipas a perceberem que não é assim tão complicado quanto isso trabalhar a acessibilidade digital na realidade do dia a dia das equipas de projeto.
Sobre a legislação
A legislação é por norma a forma mais comum de começar a conversa sobre acessibilidade digital na empresa. A alteração mais recente do quadro legislativo para o setor privado, dá-nos essa oportunidade. De todas as questões que podem surgir sobre este tópico em específico, aqui ficam as perguntas e respostas às mais comuns.
Será que a minha empresa é afetada pela mudança da lei?
Muito provavelmente, sim. Depende claro do tipo de produtos e serviços que coloque a disposição dos consumidores e o setor de atividade. Mas o Decreto-Lei n.º 82/2022 que transpõe para a legislação nacional a Diretiva (UE) 2019/882 tem uma área de atuação bastante alargada.
A sugestão mais importante aqui é, antes de iniciar qualquer processo de trabalho da acessibilidade digital na tua empresa, lê com muita atenção estes documentos. Se existirem dúvidas na sua interpretação, procura ajuda quer seja de especialistas de acessibilidade ou jurídica.
Quais podem ser as penalizações por não cumprir a lei?
Poderão existir vários tipos de “penalizações” e que importa ter em conta. Claro que poderemos estar a falar de coimas por incumprimento da lei, mas talvez essas até nem sejam até as penalizações mais pesadas que podem cair sobre o negócio da empresa.
Não cumprir a lei de acessibilidade digital e ser reconhecido na sociedade por isso, por exemplo através de ecos nas redes sociais ou comunicação social, pode levar a danos reputacionais das marcas muito significativos. Esses danos colaterais podem em última análise afetar a relação dos produtos e serviços das marcas com os consumidores. Por conseguinte, tudo isso pode ter um impacto nas vendas o que seria a pior das “penalizações” ou das “coimas”.
A partir de quando será necessário cumprir a lei de acessibilidade?
O Decreto-Lei n.º 82/2022 prevê várias datas de transição conforme os tipos e abrangência dos produtos e serviços das empresas. É importante ler com atenção este documento e analisar no contexto concreto de cada empresa qual a visão temporal aplicável.
Contudo, o decreto-lei aponta também como primeira data de referência o dia 28 de Junho de 2025. A partir deste dia, muitos dos produtos e serviços digitais das empresas terão que ser acessíveis, cumprindo o disposto no decreto-lei. Parece sempre que falta muito tempo, mas não falta. Quanto mais cedo se começar o trabalho sustentado e estruturado de acessibilidade digital, melhor. Mais fácil será minimizar o impacto deste trabalho no dia a dia já por si atarefado das equipas de projeto.
Sobre o valor do investimento
Naturalmente, outra coisa que preocupa bastante as empresas e sobre qual surgem também muitas questões é, sobre quanto é isso nos vai custar? A ansiedade de ter uma resposta a este tipo de perguntas esbarra no cuidado que devemos ter. é importante contextualizar na realidade da empresa a resposta à quantificação do investimento que é necessário fazer, para que os números estejam interligados com a realidade e não sejam criadas falsas expectativas.
Quanto pode custar a adaptação de produtos e serviços digitais?
Um dos temas mais relevantes para as empresas (e com razão) são os custos que podem advir de reconverter a acessibilidade digital dos produtos ou serviços atuais. Importa aqui enquadrar o trabalho em duas vertentes muito distintas e que terão custos muito diferentes. Uma coisa é reconverter produtos e serviços digitais atualmente em funcionamento. Isto é algo dispendioso porque muitas vezes é necessário refazer de raiz muitas “peças”.
Outra coisa bem diferente e com um custo extraordinariamente reduzido, é incluir a acessibilidade digital em tudo aquilo que de novo a empresa está a começar a fazer hoje. E isso é incrivelmente barato! Barato é mesmo a palavra certa. Sejam produtos e serviços inteiros, novos módulos de soluções em funcionamento, ou até pequenos componentes de interface, tudo aquilo que for bem feito de raiz hoje, será menos uma coisa a refazer mais à frente a custos muito maiores.
Sobre o processo
Se queremos trabalho a acessibilidade digital em escala e de forma continuada, ela deve estar intimamente interligadas com os processos de trabalho das equipas. é fundamental que a acessibilidade não aparece no processo, dias antes do lançamento e como uma mera verificação de rotina. Nessa fase, já será seguramente, muito tarde para fazer um trabalho estruturado. É por isso importante, antes de começar este trabalho, conseguir responder a algumas questões fundamentais sobre a relação da acessibilidade com os processos de trabalho das equipas.
Em que altura nos devemos preocupar com a acessibilidade?
Sempre! A resposta pode parecer simples de mais mas na verdade é mesmo. Se queremos fazer um trabalho estruturado em acessibilidade digital (a custos muito mais reduzidos) as preocupações de acessibilidade têm que estar à mesa das decisões em todas as etapas do projeto. Sem exceção.
Nas etapas de design e development, claro está. Mas também quando estamos a construir o caderno de encargos do projeto, a escolher parceiros para trabalhar connosco, a definir requisitos funcionais, a escrever user stories ou a testar soluções. Em tudo aquilo que são as atividades e momentos do projeto, podemos perguntar-nos “como é que a acessibilidade digital entra aqui?”.
Quem tem na equipa a responsabilidade da acessibilidade?
Todos sem excepção. A acessibilidade digital é responsabilidade de todos os profissionais de transformação digital. Cada qual, dentro da sua missão especifica no projeto ou nas empresas, têm um papel importante a desempenhar para que no final o nosso produto ou serviço possa ser utilizado pelo maior número de pessoas.
Managers, Project managers, Product owners, Analysts, Software architects, Frontend developers, Backend developers, UX designers, UI designers, Visual designers, Product designers, Content editors, Testers, Marketers todos são chamados a contribuir para a construção de soluções digitais realmente acessíveis.
Por onde se deve começar o trabalho de acessibilidade?
O contexto de cada empresa ditará qual a melhor forma de começar um processo de trabalho de transformação da acessibilidade digital. Contudo, existem duas áreas de trabalho que poderão ser quase sempre incontornáveis e que podem ser dois pontos de partida interessantes: auditoria e formação.
Auditoria porque antes de planear o trabalho que temos pela frente, alocar equipas e definir valores de investimento temos que saber qual é o nosso ponto de partida. Em que ponto está a acessibilidade dos nossos produtos e serviços digitais hoje? Quais os erros mais comuns e como os corrigimos? É importante para começar ter um mapeamento detalhado deste cenário. Isto tornará muito mais fácil (e real) qualquer planeamento que se possa fazer a seguir.
Depois a formação, porque o nosso objetivo não pode ser só fazer a versão seguinte do produto ou serviço acessível. É preciso manter esses produtos e serviços acessíveis ao longo do tempo com práticas de acessibilidade continuadas. Para que isso aconteça o conhecimento tem que estar forçosamente enraizado nas equipas. E isso só se faz capacitando todas as pessoas através de programas de formação (e prática de projeto).
Fotografias © Marsha Reid, Sebastian Pichler, John McArthur e Tim Mossholder (Unsplash)